Bernard Dort
Fala-se muito em Genet e muito pouco em sua obra. Quando se comenta a obra é para voltar à personagem Genet, para exaltar a lenda do "asilado, ladrão, mendigo, prisioneiro, pederasta...e artista". Em resumo, não se cessa de canonizar "São Genet". Cada crítico se julga obrigado a refazer, por conta própria e segundo sua medida, o itinerário traçado definitivamente por Sartre. É impossível sair do torniquete: a obra de Genet remete à personagem Genet e esta personagem só existe pela obra. Logo, qualquer crítica parece irrisória e vã: Sartre, afinal, não disse tudo o que havia para dizer sobre o artista Genet como herói de nossa época e antítese do revolucionário Bukharino? E o próprio Genet, em seu Diário de um ladrão, não deu o último retoque a seu auto-retrato?
Uma de suas preocupações essenciais foi certamente a de criar a própria imagem. Seus romances são biografias imaginárias, como também espelhos enganadores a realçar sua imagem. Mas Genet não parou aí. Desde o Diário de um ladrão já nos tinha mostrado o avesso destes espelhos. Talvez seja precisamente o livro de Sartre que lhe tenha permitido sair do torniquete no qual, agora, se fecham seus críticos. Ele próprio reconhece: "Levei algum tempo para me refazer. Fiquei quase incapaz de continuar a escrever...O livro de Sartre criou um vazio que permitiu uma certa deteriorização psicológica. Esta deteriorização permitiu a mediação que me conduziu ao meu teatro".
A mutação teatral
Com exceção de Alta Vigilância, ainda bem próximo de seus romances, e de As Criadas, todo o teatro de Genet é, na verdade, posterior a São Genet, Comediante e Mártir. Desde então Genet deixou de escrever ou, pelo menos, de publicar romances. Assim, sua atividade como dramaturgo coincide, quanto à essência, com uma mutação. O escritor Genet desligou-se, graças à mediação sartriana, da personagem Genet. Embora conservando a mesma temática sua obra mudou de estrutura, de função. E, talvez, de significado. É precisamente o que, à força de supervalorizar a personagem, a crítica deixou de assinalar: nas obras de Claude Bonnefoy e de Jean-Marie Magnan, a parte concedida ao teatro é pequena. E as peças só são lembradas em relação ao universo romanesco. Ora, é compreendendo a distância que separa as peças dos romances de Genet que poderemos entender o seu teatro. Não aproximando este daqueles.
Impõe-se uma primeira verificação: o universo de Genet se alargou. Nos romances ele se restringira ao meio fechado da prisão ou das salas dos fundos dos cafés de Pigalle, onde os homossexuais de Nossa Senhora das Flores exibem seus trejeitos. No palco, cresce vertiginosamente: a princípio, restrito à cela de uma prisão (Alta Vigilância), depois ao quarto da patroa onde as criadas representam sua servidão e sua falsa revolta, ele se estendeu a todo o espaço de uma cidade, do bordel ao quartel-general dos revolucionários, passando por um simulacro do Palais Royal (em O Balcão), em seguida, a um continente fictício: a África de Os Negros. Enfim, a um país real: a Argélia, em luta pela independência, que vem ainda prolongar o "balcão" do reino dos mortos. E, à concentração no tempo, , que era regra, por exemplo, de Pompas Fúnebres, esta longa meditação de Genet, de volta ao necrotério, sobre a morte de João D, sucede o desenrolar da crônica e dos acontecimentos (da colonização à independência) de Os Biombos.
Será necessário nos apressarmos em concluir que, como escrevia Claude Bonnegoy, "Genet se socializava?". Sem dúvida, , "já em As Criadas a relação patrão-empregada envolvia e perturbava a relação amorosa que unia as empregadas à patroa. O Balcão, Os Negros, Os Biombos, são críticas dos preconceitos da justiça, dos poderes, da opressão, do colonialismo. Mas são críticas indiretas, pois Genet dá tudo em bloco e mostra as situações em sua complexidade. Cabe ao espectador concluir". Fazendo do dramaturgo Genet um escritor engajado, corria-se o risco de nada compreender de seu teatro. E, além disso, o risco de justificar alguns dos ataques imbecis de que ele é alvo.
Neste particular, Genet é incisivo, ao afirmar que não escreveu as peças para atacar ou defender quem quer que seja: "Uma coisa deve ser escrita: não se trata de arrazoado sobre a condição das criadas. Suponho que exista um sindicato das empregadas domésticas - isto não é da minha conta. Que minhas peças ajudem os negros, isso não me preocupa. Aliás, não creio nisso. Acredito que a ação, a luta direta contra o colonialismo faz mais pelos negros que uma peça de teatro". Mais que isto, toda peça teatral deste tipo lhe é suspeita. Ela corre o risco de se voltar contra a causa que procura defender. Pois "eis que uma consciência conciliadora não cessa de sugerir aos espectadores: o problema de uma certa desordem - ou mal - sendo solucionado no palco, indica que, na realidade, está abolido. Porque, de acordo com as convenções dramáticas de nossa época, a representação teatral não pode ser senão a representação de um fato. Passemos, pois, a outra coisa e deixemos o nosso coração se encher de orgulho a partir do momento em que tomamos o partido do herói que tentou - e obteve - a solução".
Trata-se, portanto, de fazer uma coisa diferente e não de pretender resolver, pelo teatro, as dificuldades do mundo: "Ora, nenhum problema exposto deveria ser resolvido no imaginário, sobretudo porque a solução dramática corre para uma ordem social acabada. Pelo contrário, que o mal exploda em cena, nos mostre nus, se possível nos deixe perplexos e contando apenas com nossos próprios recursos".
Didatismo ou mágica?
Pode-se, todavia, contornar esta recusa categórica e ver no dramaturgo Genet, se não um escritor engajado, pelo menos um escritor realista - o que é bem diferente. Verificando que numa peça como O Balcão "inúmeros temas tradicionais de Genet, o duplo, o espelho, a sexualidade e, sobretudo, a superioridade do sonho, 'puro e estéril' e no limite da morte, sobre a realidade eficaz mas 'impura e maculada de compromisso' foram relegados ao nível de acidentes de segundo plano", Lucien Goldmann afirma que a obra "tem, no seu conjunto, uma estrutura realista e didática (no sentido brechtiano da palavra)".
Para ele, o "assunto da peça, perfeitamenmte claro, quase didático, é, na realidade, constituído pelas transformações essenciais da sociedade industrial na primeira metade do século". O Balcão seria, assim, uma vasta parábola realista na qual Genet teria (consciente ou inconscientemente) "transposto para o plano literário os grandes transtornos políticos e sociais do século XX e sobretudo para a sociedade ocidental, o aborto da imensa esperança revolucionária que caracterizou as primeiras décadas do século". Lucien Goldmann vê a melhor prova disto no que considera a ação central da peça: "a ascensão do Chefe de Polícia e da Proprietária da casa de ilusões (encarnações particulares daquilo que um sociólogo teria designado mais amplamente como a tecnocracia, encarnações que, entretanto, são acidentais, pois as duas personagens representam os dois aspectos essenciais da mesma organização da empresa e o poder do Estado) - a um prestígio anteriormente reservado à Rainha, ao Juiz e ao General".
Tal interpretação é, certamente, muito engenhosa. Não deixa entretanto de levantar graves objeções. De início, silencia sobre certas personagens de O Balcão: por exemplo, a do Mendigo (do oitavo quadro) e do Escravo (do nono quadro), que eram representados em Paris pelo mesmo ator. Ora, essa dupla pesonagem, que só na aparência tem um papel secundário, preenche uma função essencial: único, com o Enviado do Palácio, a não ser se metamorfosear e a não aceder à glória morta das "imagens" da casa de ilusões, representa, sem dúvida, o poeta, talvez o próprio Genet. Em seguida, esta interpretação reduz a obra a um esquema sócio-histórico por demais vasto e impreciso para que se possa afirmar, como fez Goldmann, que temos com O Balcão a "primeira grande peça brechtiana da literatura francesa", um exemplo de "teatro épico e didático" cujo objetivo seria contar, "através de um plano típico, um devir essencial".
O próprio Goldmann o reconhece de passagem: é unicamente no que tange às "suas transformações na superestrutura" que O Balcão descreve as grandes transformações históricas. Enfim, em vez de realismo épico brechtiano, é apenas de uma grande constatação naturalista, em grande escala, de que se deveria falar. Pois, diferentemente de Brecht, Genet não procura mostrar as causas de tais transformações: contenta-se em apontar os efeitos - e efeitos aparentemente irreversíveis. Enfim, a tentativa de decifração goldmaniana despreza um elemento fundamental da estrutura dramática da obra de Genet: seu caráter de cerimônia e o uso constante do teatro dentro do teatro. Talvez Goldmann pudesse responder a esta objeção afirmando que o referido jogo teatral é justamente o sinal da reificação da sociedade industrial moderna. Confessemos: tal analogia fica bastante vaga e seria válida, sem dúvida, para qualquer sociedade.
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Fragmento extraído do livro "O teatro e sua realidade", Editora Perspectiva, 1977, tradução de Fernando Peixoto. .
domingo, 3 de outubro de 2010
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