sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Constantin Stanislavski

Por Odette Aslan


          É difícil, com a distância de três quartos de século e através de obras teóricas traduzidas de maneira incompleta, reconstituir cronologicamente os meandros seguidos por Stanislavski ao longo de suas pesquisas. Como todo experimentador, conheceu hesitações, mudanças de caminho; nem sempre teve tempo de ordenar tudo e alguns de seus escritos ainda não chegaram até nós.

          Nessas condições, parece-nos arbitrário cindir em dois períodos a concepção de seu ensinamento, segundo tente partir da "composição interior" ou da "composição exterior" da personagem. Digamos que, no fim de sua carreira, Stanislavski parece ter encarado com outros olhos a expressão corporal. 

          Em seu esforço de esclarecer os problemas do ator, Stanislavski, que não era um homem de ciência, usa com freqüência um vocabulário impreciso; seus tradutores procuraram equivalentes, que nem sempre são termos teatrais que satisfazem. Evitaremos as palavras objetivo, superobjetivo ou objetivo físico. 

          Um mal-entendido vem da palavra "sistema" que ele empregou, mas cuja má interpretação recusou: "Esse método não foi nem combinado nem inventado por ninguém. É baseado nas leis da natureza". Não é um livro de receitas, "é todo um estilo de vida no qual é preciso que você creia e que se eduque durante anos". 

          Um estilo de vida. Eis o que é menos transmissível sem a presença do Mestre. O que talvez explique por que nada ou quase nada tenha sido tentado na França para ensinar essa concepção do processo do ator. Fora Pierre Valde, cujo ensino se inspira nos princípios de Stanislavski, e Antoine Vitez, que os utiliza juntamente com outros métodos, não creio existirem muitos cursos em que seu nome seja apenas mencionado.

          Aplica-se o "sistema" na URRS e em todos os países do Leste ou, pelo menos, a gente de teatro se inspira nele; só é conhecido na Inglaterra e nos Estados Unidos através da deformação a que o submeteram os adeptos da psicanálise, notadamente Lee Strasberg no Actors Studio. 

          A título de cotejo com a formação tradicional, isolamos inicialmente o trabalho vocal e gestual.

A VOZ    

          Quando foi trabalhar com seus primeiros atores, fosse porque não tivessem problemas ou porque tivessem recebido formação anterior, parece, a partir de suas anotações, que Stanislavski não se interessou com os problemas de voz e dicção;. voltou a eles mais tarde com alunos mais jovens, indicando-lhes o que ele próprio havia praticado no começo de sua carreira.

          "A pronúncia exige um treinamento e uma técnica muito próximos do virtuosismo"; ele sublinha a beleza da linguagem, detém-se na palavra de valor, na pontuação, nas pausas, no ritmo; recorre à fonética e dá a seus alunos um professor que lhes coloque a voz. Ele mesmo começara por estudar canto e recomenda aos atores exercitarem-se, se não ao som do piano, ao menos com diapasão.

          Devem ter senso musical e introduzir em sua fala uma espécie de melodia. Aprecia a voz na máscara, observa os sons produzidos pela garganta, pelo nariz, peito, laringe e outras caixas de ressonância. "Um som que sai dos dentes ou que é projetado contra o osso, isto é, o crânio, adquire força e timbre", ensinara-lhe um cantor. Ele conhece o perigo de uma dicção cuidada demais, mas deseja que a arte de dizer comunique as nuanças mais impalpáveis do pensamento e do sentimento. Chega ao ponto de estabelecer esquemas de entonação.

          Todos esses detalhes nos eram desconhecidos até o aparecimento de A Construção da Personagem. Ora, Vassili Toporkov, que representou Tchichilov em Almas Mortas, conta que o primeiro ensaio (quatro horas no relógio) se resumiu em fazê-lo dizer apenas uma frase: "Chegando a esta cidade, julguei ser meu dever vir apresentar-vos os meus respeitos". Vassili Sakhnovski confirma essa prática: "Stanislavski desmembrava a frase para que o ator pusesse acentuações onde fosse necessário e exprimisse o pensamento corretamente, ou então trabalhava a dicção do ator".

          Em 1924, exigia de um ator "uma voz forte, bem treinada, de timbre agradável ou pelo menos expressivo, uma dicção perfeita, plasticidade de movimento (sem ser posudo), rosto belo e versátil, boa silhueta e mãos expressivas. Observa que os atores latinos falam em "maior" e os russos em "menor", o que os atrapalha para interpretar Molière ou Goldoni. 

O GESTO

          Os alunos praticam ginástica sueca para tornar os músculos e articuações flexíveis; acrobacias que desenvolvem a agilidade, a capacidade de decisão; a dança, que com sua leveza corrige o rigor "militar" da ginástica; a dança clássica alarga os gestos e melhora a posição dos braços e das pernas (graças à posição en dehors), exercita os pulsos e os tornozelos (mas é preciso evitar o maneirismo das bailarinas).

          Stanislavski observou que a dança clássica ensina a manter melhor a postura das costas, a sentir a coluna vertebral bem assentada na vértebra mais baixa, o que proporciona um sólido suporte ao torso. Há ainda as aulas de movimento em que as moças devem vir com sapatos de salto baixo ou sem salto. Esse treinamento corporal aplicado ao ator assemelha-se bastante ao de Dullin.

          Quanto mais nos perguntamos sobre a energia interna que preside o movimento, mais encontramos em exercícios com música o senso da rítmica dalcroziana (embora o nome de Dalcroze não seja mencionado, a pesquisa é idêntica). Por fim chega-se aos gestos que o ator pode executar em um papel. Stanislavski exige sobriedade e controle: 

          "Todo movimento que, fora do teatro, possa ser um movimento espontâneo e familiar ao ator o separa da personagem quando atua em cena. Tanto os gestos como os sentimentos não devem ser pessoais do ator, mas 'análogos aos da personagem' e econômicos".

          Esse ensino do gesto foi consignado tardiamente em A Construção da Personagem, publicado em 1929-1930. Vsevolod Meyerhold, que trabalhou no Teatro de Arte, deixou-o em 1902 e voltou em 1905 para ali fundar o Primeiro Estúdio; contribuiu certamente para atrair a atenção de Stanislavski para a importância do corpo. Nos artigos reunidos em 1908 (O Livro sobre o Teatro Novo), Meyerhold diz particularmente:

          O teatro naturalista [entende-se teatro de Stanislavski] vê no rosto o principál meio de expressão do ator, negligenciando todos os outros. Ignora os encantos da plasticidade e não exige de seus atores um treinamento corporal. Quando criou uma escola, esqueceu que a cultura física deveria ser ali a matéria principal de ensino.

           Stanislavski apreciava mais o jeito dos atores franceses revelarem o ritmo interior de uma personagem por um leve movimento das mãos, seu modo de "falar com os olhos", sem gestos. Desprezaria a técnica acrobática do ator meyerholdiano, pouco acrobata e menos ainda ator. 

          Os principais pontos do trabalho de Stanislavski podem ser resumidos da seguinte forma:

. Luta contra o clichê, a má "teatralidade", busca da sinceridade; 

. Estabelecimento das vontades da personagem para motivar o jogo do ator;

. Clima favorável à emoção cênica, meios de desencadear uma emoção verdadeira no ator;

. Estabelecimento de um subtexto para exprimir nas peças de Tchecov o que se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, para nutrir o texto.


REAÇÃO CONTRA A MÁ "TEATRALIDADE"

           A formação do ator, a concepção da atuação por Stanislavski se rebelam contra os princípios tradicionais, as banalidades e o exibicionismo em voga nos teatros russos. No tempo de Pedro, O Grande, lembra Nicolau Evreinoff, o ator punha o público a par de seus estado afetivo e depois se exprimia com gestos demonstrativos. Por exemplo, para traduzir a cólera "rasgava as vestes, ia e vinha como uma fera enjaulada, virava os olhos furibundos".

          O escasso número de ensaios incitava os atores a usarem estereótipos. Declamavam com ênfase e sorviam às vezes na embriaguez o gênio da inspiração. Exteriorizavam-se até a histeria, abandonando-se ao gesto eslavo do sofrimento, utilizando efeitos fáceis, derramando suas lágrimas com abundância. Foram os autores que reclamaram maior naturalidade.

           Puschkin enaltece a verdade das paixões, Gógol pede a verdade e a naturalidade na palavra e na expressão corporal. Nemirovicho-Dantchenko, a quem Stanislavski se associou, reclama uma dicção e uma mímica vivas, não "representadas", mas correspondentes a movimentos psicológicos e provenientes da individualidade do ator, isto é, sua imaginação, sua hereditariedade, seu inconsciente".

          Isso vai no sentido da evolução do século XIX. Desenvolveu-se o espírito científico. A lantejoula teatral, os dourados e o artificialismo começam a chocar. As denúncias de Zola (O Naturalismo no Teatro), ou de Bec de Fouquières (A Arte da Encenação), as excursões dos Meininger (troupe alemã de George II, duque da Turíngia), abalaram o ilusionismo em favor do realismo.

          O teatro passa a prender-se à exatidão histórica, tanto em relação aos cenários quanto aos figurinos e acessórios. Antoine apresenta no palco um "pedaço de vida". Seu ator deve viver uma ação e não mais representar uma ficção. O efeito vocal gratuito é suprimido, às vezes se fala em voz baixa em lugar de clarinar tudo. É proibido avançar até o proscênio para declamar um "bife" de frente, acontecem momentos em que o ator representa de costas. 

           Imagina-se uma quarta parede ao nível da cortina, definida por Jean Jullien, uma parede "transparente para o público, opaca para o comediante". O ator senta, anda, comporta-se em cena como uma personagem, como um homem da vida real e não como um membro da Comédie-Française.

           Stanislavski, por sua vez, combateu a rotina (nada de clichês convencionais), o cabotinismo (nada de vedetes, nada de efeitos convencionais), a mentira teatral (nada de emoção falsa, nada de cenários com truques). Além de mergulhar numa documentação meticulosa, fazia seua atores e aderecistas conhecerem os locais verdadeiros em que se passava a ação da peça.

          Graças ao cenário realista, o ator esquece que está em cena; age somente em relação direta com seus parceiros de cena, não pensa nos espectadores, nem lhes dá piscadelas acumpliciadoras. Em vez de acessórios de papelão em que mal toca, dispõe dos próprios objetos com os quais sua atuação se relaciona. Tais objetos são parte integrante da ação cênica e lhe dão segurança. Estão prontos desde os ensaios para que o ator se habitue com eles.

          Stanislavski parece querer resolver um duplo problema: levar o espectador a acreditar na realidade daquilo que é apresentado em cena e incitar o ator a acreditar nela. Não confia na imaginação e propõe verdadeiros suportes para que o comediante confunda a vida da peça com a própria vida. Entretanto, chega à noção de uma teatralidade cênica, a qual, se não respeita mais inteiramente a estrita verdade histórica, ajuda o ator a crer  em sua personagem, mas sem ser enganado pelo termo realismo:

          "Na vida cotidiana, a verdade é o que existe realmente, o que se conhece. Enquanto em cena, ela é constituída de coisas que não existem realmente, mas que poderiam ocorrer".

          Depois de haver dedicado um grande cuidado à verossimilhança dos rostos e pensado que o fato de se maquiar, de vestir o figurino exato da personagem ajudava o ator a tornar-se a personagem, tal abordagem pareceu-lhe insuficiente. A verdade deve provir de mais longe, de algo mais profundo: é preciso encontrar a verdade interior.

          Em Ralé estamos diante de personagens que Gorki não definiu muito, que têm apenas uma frase ou nada a dizer. Stanislavski as recheia, dá-lhes uma biografia, um passado. Ele as torna críveis ao comediante infundindo-lhes uma vida orgânica. A personagem não existe apenas no momento em que entra em cena ou no momento em que tem uma réplica a dar, existe antes e depois, tem uma continuidade.

          Antes de projetar a personagem em cena, o ator precisa elaborar a concepção global dessa personagem e desenvolver um mecanismo consciente para traduzi-la em público. Concepção e mecanismo fazem parte do que se chama o Sistema. Ora, dissemos que o pseudo-sistema de Stanislavski era antes de mais nada um "modo de vida". A explicação de seu trabalho cênico é rigorosamente inseparável de sua ética.

BUSCA DE UMA ÉTICA

          Jovem ator, Stanislavski se pergunta sobre seu métier, observa seus professores, os atores famosos, seus companheiros de alenco e, mais tarde, seus alunos. Tenta compreender apaixonadamente o processo interior do jogo teatral. Redige um diário desde os 17 anos; toma notas ao longo de toda sua carreira. Extraíram-se daí oito volumes de 500 páginas.

          Desajeitado em seus movimentos no começo, contraído em cena, atrapalhado por uma voz rouca, procura assiduamente um meio de progredir, de ajudar os outros a progredir. Consciencioso, trabalhador, lembra-se do rigor dos Meininger, instaura uma disciplina estrita, exige qualidades morais: na vida particular e profissional, o aluno, o ator, deve ser probo, simples e modesto. Ingressa no teatro de Stanislavski como se ingressasse numa religião, para dar a cada dia o melhor de si, para merecer um dia chegar ao palco.

          Stanislavski não quer recrutar os que consideram a  carreira teatral somente como meio de tirar proveito de sua beleza ou ganhar dinheiro. Proíbe rivalidades mesquinhas. Não há para ele nem atores nem figurantes. Elimina a palavra figurante e a substitui pela palavra colaborador, Não quer analfabetos e desenvolve a cultura geral de seus alunos. Seus atores devem apresentar qualidades de imaginação e personalidade, mas na atuação precisam fundir-se ao conjunto: não representam "um papel", representam "uma peça", mesmo se tiverem poucas falas a dizer.

          Desde o despertar, devem pensar na personagem que encarnarão à noite. Se alguém chegar atrasado paga multa. Não tolera que se ensaie a meia voz ou que se deixe a sala de ensaios sem autorização. O namoro é proibido, assim como qualquer conversa alheia ao trabalho. Ele próprio leva uma vida regrada, nunca bebe álcool. Durante a representação o teatro fica em "estado de alerta". Nada deverá estorvar o espetáculo; Stanislavski, ao sair de cena, evita fazer barulho no assoalho. A calma deve reinar nos bastidores para favorecer a concentração dos atores.

          Stanislavski é aberto, generoso. Crê no bem. Quer produzir um teatro acessível a todos e difundir a beleza. Ensina seus comediantes a ver, ouvir e entender o belo: "É um hábito que eleva o espírito". Lembra o Tio Vânia, de Tchecov: "No ser humano tudo deve ser belo, seu rosto, suas roupas, sua alma, seus persamentos". 

          Esse culto à beleza, essa nobreza natural de Stanislavski, são perceptíveis em suas interpretações de ator e no seu ensinamento. Liga-se à alma, à vida interior. Ele a traduz com uma musicalidade que é pessoal e que tocou todos os críticos. Representar um papel é "criar a vida profunda de um espírito humano e exprimi-la de forma artística".

          Trabalhando para um espectador russo sensível ao drama, quer comevê-lo, fazê-lo experimentar emoções, enriquecer sua vida interior. Honesto, o próprio comediante deve ficar ele próprio emocionado e não interromper o encanto da representação fazendo reverências a cada passagem para granjear aplausos. Os agradecimetnos durante a ação foram suprimidos e em seguida também aqueles ao fim de cada ato.

          Essa caminhada rumo à austeridade jamais se desviou. Aperfeiçoando-se ao longo de sua carreira, o ator ideal, segundo Stanislavski, procede todo dia à sua toalete moral para acolher melhor sua personagem, para favorecer o estado emotivo e criador. É uma tarefa sem fim. "Você não age como um Tchichikov", disse ele a seu intérprete de Almas Mortas. "Daqui a dez anos talvez o consiga. Dez anos mais tarde você será a personagem Tchichikov e com mais dez anos você representará Gógol".

A EMOÇÃO

          O ator não deve abandonar-se à emoção sem controle, deve dominá-la. Já em 1888, Stanislavski havia observado: "Obtemos melhor resultado quando nos dominamos sem nos abandonarmos totalmente ao papel, e somos medíocres quando nos preocupamos com a impressão que causamos no público". 

          Mas o ator que se controla demais arrisca-se a bloquear qualquer emoção. Eis o que Stanislavski aconselha a fazer para que a emoção requerida se produza no momento desejado, por ocasião da representação: determinar as ações precisas para executar no decorrer do papel.

          O ator deve saber por que está lá, ou porque ele entra, o que vem fazer, o que quer de seu parceiro, como consegui-lo. Tudo isso está incluso no texto, que é preciso decodificar em função das intenções, das vontades da personagem. Falar é para Stanislavski uma ação verbal; há outras ações no interior de uma cena.

           Essas pequenas ações múltiplas se integram na "linha contínua de ações" da personagem. Para conceber seu papel, o ator usa verbos. Age sobre, age contra, dirige-se a. É convencendo o parceiro que convence o público. Quando mais obstáculos encontra, mais seu jogo reforça e se torna probante. Seu itinerário no papel é uma seqüência de conflitos a resolver, de obstáculos a transpor. Nada é fácil em cena, nada é gratuito. Tudo deve ter um objetivo, ser justificado.

          O estado do ator em cena, diante de uma ribalta iluminada e de espectadores, é um estado contra a natureza, que impede o comediante de sentir livremente as emoções de sua personagem. Um dia ele tem a sorte de que a inspiração venha, outros dias ela falha e o comediante torna-se execrável. É preciso dar meios ao ator de ser igual toda noite, com hora marcada; é preciso que ele possa voluntariamentefazer brotar dentro de si emoções para que esteja apto a expressá-las.

          Isadora Duncan dizia que antes de entrar em cena precisava acionar um motor na alma. Stanislavski procurou um motor semelhante para o ator. Partindo da biografia da personagem, de seu comportamento, das circunstâncias da ação, o ator procede "como se", entra em um processo psicológico que desencadeia nele o sentimento real, ele "vive" o acontecimento e suas conseqüências, em vez de contentar-se em reproduzir a manifestação exterior de um sentimento que ele não sente.

          Ela instaura uma motivação verdadeira, ele se põe em jogo de atuação. Tudo nele contribui para esse esforço, não apenas seu pensamento e sua fala, mas seus nervos, suas glândulas, sua respiração. O psíquico arrasta o físico, é a escola do "reviver", oposta à escola da "representação". Mediante esse processo o comediante pode reviver o papel centenas de vezes, sem prejuízo para a qualidade de sua emoção (cumpre, aliás, desempenhar um papel centenas de vezes para interpretar sua quintessência). 

          Para desencadear o subconsciente, Stanislavski utiliza a memória emotiva. A lembrança de uma experiência pessoal do comediante pode ajudá-lo em cena a desencadear uma emoção análoga àquela que deve experimentar a personagem. Com a condição de que essa emoção tenha sido forte o suficiente para poder reproduzir-se com intensidade. É uma transferência. Em outros termos: Stanislavski, para provocar uma emoção sincera, recorre a um recurso enganoso.

          Se a sensibilidade permanece rebelde a todos esses condicionamentos, Stanislavski oferece uma bóia de salvação: é preciso partir da "composição exterior". Não só maquiar-se e vestir-se como a personagem, mas andar, comportar-se como ela, executar ações físicas para desencadear a emoção segundo a fórmula: eu choro e acabo ficando triste. Ou ainda: eu corro e acabo ficando com medo.

          Tudo se passa como se Stanislavski trabalhasse comediantes pouco dotados, carentes de imaginação ou de personalidade. Cumpre dizer a seu favor que seu teatro defrontou-se com uma dramaturgia nova. Tchecov tinha sido declarado irrepresentável. O próprio Stanislavski exclamara, ao ler A Gaivota: "Será possível efetivamente representar isso? Não entendo nada". "Os caracteres pareciam-lhe incompletos", explica Nemirovitch-Dantchenko, "as paixões ternas, as palavras, talvez simples demais, as personagens sem oferecer bom material aos atores..."

           Sem conhecer nada da vida no campo, Stanislavski não sentia a imensa sedução do lirismo com que Tchecov cobre essa vida cotidiana. Mas finalmente compreendeu que cada palavra de A Gaivota encobria um sentido oculto, que cada silêncio traía um estado de alma. Era preciso obrigar o intérprete a tomar consciência do que havia para além das palavras, a construir o universo tchecoviano - não com heróis, mas com personagens comuns, não com cenas de efeito, mas com fragmentos de conversas, silêncios; em outros termos, tempos que se acreditavam "mortos".

          Ações a executar, lembranças a evocar, movimentos cênicos, acessórios a manipular, constituem a partitura do papel, ou subtexto, o filme interior de imagens que provocam os sentimentos. A isso chamaríamos o que corresponde a linha do papel e o processo mental do comediante. O subtexto proveio das peças de Tchecov, cujas falas parecem banais. Com um subtexto rico, quase não há mais necessidade de se entenderem as palavras.

          Como exercício, Stanislavski não diz ao aluno que papel ele vai estudar. Só lhe fornece o "canevas" (o que é semelhante aos exercícios de improvisação de Copeau). O aluno constrói sua linha de ações, insere-se nas circunstâncias dadas e com esse subtexto diz frase suas (improvisadas) ou simplesmente tatati-tatá...Depois lhe dão o texto verdadeiro do autor para dizer.

          Os momentos decisivos das ações do subtexto devem coincidir com o texto como um  decalque. Para o estudo dos gestos, Stanislavski manda retomar o mesmo episódio sentado, mãos sob o acento para impedir a gesticulação inconsciente. O aluno exterioriza pelo olhar, pela mímica, pela entonação, pelo jogo dos dedos quando suas mãos são liberadas. Enfim, preocupa-se em aproximar-se da personagem. No curso de suas últimas pesquisas, Stanislavski propunha-se a encontar a chave do ritmo, que, suspeitava, devia agir diretamente sobre o sentimento.

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Extraído de O Ator no Século XX, Editora Perspectiva.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Estrutura Dramatúrgica do Teatro de Revista

1. Quadros obrigatórios e alegóricos:

da IMPRENSA - onde se apresentavas os jornais da época.
do TEATRO - traçava um panorama cômico das atividades teatrais do ano.
das DOENÇAS - a varíola e a febre amarela apareciam devidamente personificadas.
O ANO VELHO e o ANO NOVO - também eram personificados.

2. Compére ou Compadre - apresentava os quadros, comentava, pactuava com a platéia. Conduzia a ação, ligando o espetáculo de ponta a ponta. Era mais uma convenção do que um personagem. Dupla de compadres - como o tony(mais bobo) e o clown (vivo, esperto) circenses. Podia haver também a Comère.

Aglutinador, apresentador, comentarista, dançarino, cantor, bufão, contador de piadas, ele atravessa a revista de ponta a ponta para costurar os diversos quadros, cristalizando a dinâmica do pacto com a platéia, característica própria do teatro popular. Este papel era geralmente reservado ao primeiro cômico da companhia.

3. Personagens-tipo - estavam sempre relacionados diretamente com a cidade do Rio de Janeiro. Tipos sempre presentes:

O Malandro - encarnava o perfil do carioca - às vezes malandro, às vezes cômico. As comédias gregas já apresentavam personagens trapaceiros, vadios e mulherengos. Podia ter vários nomes. Mas sempre sabia se virar: trambiqueiro, clandestino, marginal. E tal como nas ruas do Rio de Janeiro, pelas revistas de ano de Artur Azevedo desfilam caloteiros, trapaceiros, assaltantes, todos trajados com o melhor figurino da tipificação nacional: a bilontragem. Atores: Oscarito, Grande Otelo e Zé Trindade, dentre outros.

Ao desrespeitar as duas maiores instituições do capitalismo, o trabalho e a família (pois o trambiqueiro estava pronto a cortejar qualquer mulher bonita, mesmo se ela fosse casada), o malandro deixava entrever a alegria de ser marginal. Ele desencadeava o jogo com o mito popular de que "nesta terra se virando tudo dá". E no sistema moral das revistas, as malandragens, os trambiques, as marmeladas e os pequenos golpes nunca eram punidos. No final, tudo era resolvido com o jetinho brasileiro.

A Mulata - tipo mais sedutor do teatro brasileiro. Na disputa do seu coração o português e o malandro se enfrentam. A mulata aparece inicialmente como baiana. As primeiras mulatas eram atrizes brancas. Linguajar da mulata - vindo da senzala, chega à cidade e incorpora as gírias, os neologismos à sua maneira peculiar de falar e ficou pernóstica. A mulata mais famosa foi Araci Cortes.

O Caipira - ingênuos sertanejos encantados com o progresso da Capital Federal. Podia ser um pobre coitado ou um rico fazendeiro do café. Os papéis a ele destinados eram diversos, transformando-o numa espécie de "valor nacional" em oposição aos moldes estrangeiros. Foi Martins Pena quem introduziu o caipira no teatro brasileiro, em 1883 (Um sertanejo na corte). Artur Azevedo escreveu o personagem Euzébio de O Tribofe para Brandão, o Popularíssimo. O personagem do caipira imortalizou-se com o ator Mazzaroppi. A atriz mais famosa foi Alda Garrido.

O Português - grossos bigodes, tamancos, sotaque, burro, vítima do escracho e do bom humor do brasileiro, o português da piada.

A Mulher Fatal - cocotte. Fingia amor para tirar dinheiro do português ou do caipira. Muitas vezes era um falsa estrangeira.

A Caricatura Viva - retratava pessoas conhecidas da política, das artes ou da sociedade. Na encenação procurava-se copiar a figura. A platéia reconhecia com facilidade o ridicularizado, que geralmente tem um outro nome. Em O Carioca - revista de Artur Azevedo de 1886 - o Doutor Sá Bichão, caricatura viva do professor Castro Lopes, cria vários termos para substituir as palavras francesas em uso corrente pelos brasileiros. Foi Castro Lopes quem introduziu:

cinesíforo - no lugar de chauffeur
convescote - no lugar de piquenique
cardápio - no lugar de menu

Na peça o personagem Sá Bichão se assemelha a um personagem da comédia dell'arte, utilizando-se do latim e de extensas explicações complicadas - um prato cheio para os revistógrafos.

O presidente Getúlio Vargas se divertia com as caricaturas de sua pessoa no palco, porém, sem ridicularizações.

4. Metalinguagem - a prática de revelar as técnicas dramatúrgicas e da encenação sempre seduziu as platéias. A metalinguagem sempre foi um recurso utilizado pelo teatro popular. Na revista esse procedimento era comum.

5. Coplas - em francês couplets eram composições em versos destinadas a serem cantadas. No entanto, faziam parte integrante do texto dramático. Apresentava os personagens. O personagem se apresentava cantando - ária de apresentação.

6. A revista traz uma mudança espacial para os autores brasileiros. Até então, assistíamos ao teatro de gabinete, aos espaços domésticos íntimos, privados. Com a revista sobe à cena o espaço público e aberto. A revista supera o realismo convencional do drama realista e da peça de tese, levando-o aos seus limites:

Lá está a Capital, com sua ruas, prédios, monumentos, personagens típicos e mazelas características. (...) Lá está a linguagem popular, com seus acentos e gírias habilidosamente teatralizados. Lá está a História miniaturizada num painel anual onde se misturam guerras, personagens ilustres, eleições, Abolicionismo, República e reclamações do dia-a-dia contra a companhia telefônica, o preço do transporte ou os serviços de limpeza urbana. Lá está a Opinião Pública, eminência parda cujo poderio se fortalece nesta passagem do século XIX para o XX. (Flora Süssekind)
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Extraído de "História e Dramaturgia do Teatro Brasileiro I", professora Elza de Andrade, CAL, 2001. Bibliografia:

SÜSSEKIND, Flora. "As revistas do ano e a invenção do Rio de Janeiro". Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 

VENEZIANO, Neyde. "O teatro de revista no Brasil". Campinas: Pontes, 1991.

sábado, 30 de julho de 2011

Nelson Rodrigues (1912-1980)

BIOGRAFIA

1.  Nelson Rodrigues nasceu na cidade do Recife, Pernambuco, em 23 de agosto de 1912, quinto filho dos 14 que o casal Maria Esther Falcão e o jornalista Mário Rodrigues puseram no mundo. Seu pai, deputado e jornalista do Jornal do Recife, por problemas políticos resolve se mudar para o Rio de Janeiro, em 1916, onde vem trabalhar como redator parlamentar do jornal Correio da Manhã.

2. Mário Rodrigues permitia a ida dos filhos ao Correio da Manhã para visitá-lo. Dizem que jamais sonhou em ter seus filhos jornalistas: as meninas seriam médicas, os meninos advogados. Afinal, a vida que levava não era nada fácil: nomeado diretor do jornal, meteu-se numa batalha entre Epitácio Pessoa e Artur Bernardes, o que lhe custou um ano de cadeia, em 1924. Negando-se a fugir do país, ficou preso no quartel na Rua Evaristo da Veiga, no Rio de Janeiro. A partir da data de sua prisão o jornal que dirigia - Correio da Manhã - foi silenciado pelo governo por oito meses.

3. Ao ser libertado, Mário Rodrigues pede demissão e cria seu próprio jornal, A Manhã. Nelson inicia sua carreira jornalística em 29 de dezembro de 1925, como repórter de polícia. Tinha treze anos e meio, era alto, magro e seus cabelos eram indomáveis. Embora fosse filho do patrão, teve que comprar calças compridas para impor respeito aos colegas de redação. Nelson impressiona os colegas com sua capacidade de dramatizar pequenos acontecimentos. Especializou-se em descrever pactos de morte entre jovens namorados, tão constantes naquela época.

4. A irmã Dorinha morre em setembro de 1927, aos nove meses, de gastroenterite. Em 1928 a família se transfere para uma nova e luxuosa casa na Rua Joaquim Nabuco, 62, em Copacabana. Viviam um momento de muito dinheiro e muita fartura. Nessa época, o autor e seus irmãos mais velhos trabalhavam no jornal A Manhã. Nelson havia abandonado a terceira série do ginásio. Nunca mais voltou à escola, apesar do esforço feito por seu pai. 

5. Mário Rodrigues perde o jornal que, mal administrado, está cheio de dívidas. Amigo de Melo Viana, vice-presidente da República, em 21 de novembro de 1928, e apenas 49 dias depois de perder A Manhã, Mário Rodrigues lançou seu novo jornal de grande sucesso: Crítica, que chegou a ter uma circulação de 130 mil exemplares.

6. Em 26 de dezembro de 1929, a Crítica estampa matéria, na primeira página, sobre o desquite de Sylvia e José Thibau Jr. Foi a fórmula encontrada para o diário não sair sem assunto, já que era o primeiro dia após o Natal. No dia 27, pela manhã, Sylvia entra na redação da Crítica procurando por Mário Rodrigues. Não o encontrando, pede para falar com seu filho Roberto e dá-lhe um tiro no estômago. Nelson viu e ouviu tudo. Com 17 anos, era a primeira cena de violência brutal que presenciava. Seu irmão faleceu dois dias depois. Ninguém conseguirá penetrar no teatro de Nelson Rodrigues sem entender a tragédia provocada pela morte de Roberto. Apenas 67 dias após a morte do filho, Mário Rodrigues sofre, aos 44 anos, uma trombose cerebral. Faleceu dias depois de encefalite aguda e hemorragia.

7. Em 24 de outubro Washington Luís é deposto, redações e oficinas de diversos jornais são invadidas e empasteladas. Dentre elas, a do jornal dos Rodrigues. De todos eles só um não voltaria a circular: Crítica. Isso sem contar que Milton e Mário Filho foram presos, porém logo libertados. Os irmãos começam a procurar emprego, coisa que para eles não estava nada fácil. Começaram a vender tudo o que tinham para poder sobreviver e, devido ao aluguel sempre atrasado, eram obrigados a mudar de casa a cada três meses. Até que um dia uma porta se abriu para Mário Filho. Irineu Marinho havia fundado o jornal O Globo, em 1925, mas apenas 21 dias após o jornal circular pela primeira vez, morreu de enfarte. Roberto Marinho, filho de Irineu, era o sucessor natural, mas achou-se muito inexperiente para comandar um jornal e convida Mário Filho para assumir a página de esportes de O Globo. Mário aceitou, desde que pudesse levar seus irmãos Nelson e Joffre. Roberto Marinho deu seu "de acordo" com a condição de só pagar o ordenado a Mário Filho. Nelson era chamado de "filósofo" pelos colegas de O Globo, tinha um aspecto desleixado, um só terno e não vestia meias por não tê-las. Mário Filho lança seu jornal, Mundo Esportivo, justo no fim do campeonato de futebol. Sem ter assunto, inventaram algo que seria uma mina de dinheiro anos depois: o concurso das escolas de samba.

8. Em 1934 Nelson contrai pela primeira vez uma tuberculose pulmonar. Por falta de um diagnóstico precoce, o autor já havia, com apenas 21 anos, arrancado todos os dentes e posto dentadura, numa tentativa de debelar a febre que insistia em não ir embora. Vai, então, para Campos do Jordão, em São Paulo, local recomendado para tratamento. Foi a primeira de uma série de seis internações. Roberto Marinho, sabendo das dificuldades da família, continuou pagando seu ordenado normalmente. Nelson passou 14 meses no Sanatorinho. Em abril de 1936, a terrível doença atacou seu irmão Joffre, com 21 anos, que foi levado para o Sanatório em Correias, no Rio de Janeiro. Nelson ficou ao seu lado durante sete meses. No dia 16 de dezembro de 1936 Joffre faleceu.

9. Em 1937 a redação do jornal só tinha homens. Após muita conversa Roberto Marinho resolveu contratar Elza Bretanha, apadrinhada do diretor administrativo, como secretária. Voltando de sua segunda estada em Campos do Jordão, Nelson foi informado da presença de Elza, "19 anos, moradora do Estácio e dura na queda". Ele, então, sentenciou: "Está no papo". Errou. Casaram-se no dia 29 de abril de 1940. Nelson alugou uma casinha no Engenho Novo. Era sua volta ao subúrbio. Após seis meses de casamento, certa manhã Nelson acorda e comunica a Elza que estava cego. Não enxergava nada. Descobriu, indo ao médico, que se tratava de uma seqüela da tuberculose. Tomou muito antiinflamatório, melhorou, mas 30% de sua visão estava perdida para sempre, nos dois olhos.

10. Nelson procurava uma saída para seu aperto financeiro. Elza estava grávida e seu salário estava estagnado nos 500 mil réis mensais. Um dia, ao passar em frente ao Teatro Rival, viu uma enorme fila que se formava para assistir "A família lero-lero", de Raimundo Magalhães Júnior. Alguém comentou: "Esta chanchada está rendendo os tubos!". Uma luz se acendeu na cabeça do autor: por que não escrever teatro? No meio do ano de 1941 escreveu sua primeira peça: "A mulher sem pecado". Nessa época as peças ficavam, no máximo, duas semanas em cartaz. Nelson oferece sua peça para dois grandes artistas de então: Dulcina de Moraes e Jaime Costa, mas eles a recusam. Depois de muita luta, em 9 de dezembro de 1942, "A mulher sem pecado" foi levada à cena pela Comédia Brasileira, com direção de Rodolfo Mayer, no Teatro Carlos Gomes, no Rio de Janeiro. Lá ficou por duas semanas e não teve repercussão nenhuma perante o público.

11.  Em janeiro de 1943 Nelson escreve sua segunda peça teatral: "Vestido de noiva". Elza, sua mulher, fez mais de 20 cópias datilografadas para serem entregues a jornalistas, críticos e amigos. O primeiro a receber foi Manuel Bandeira. Ele gostou. Como outros, escreveu sobre ela e elogiou. Os jornais e suplementos falavam sobre "Vestido de noiva" mas o autor não conseguia encená-la. Todos diziam que era uma peça que exigia cenário complexo e teria custo muito alto. Só Thomaz Santa Rosa, um pernambucano ex-funcionário do Banco do Brasil, cantor lírico, desenhista, músico e poeta, achou que era possível. Falou então com um polonês recém chegado ao Brasil: Zibigniew Ziembisnki.

12. O grande ator e diretor leu a peça e disse: "Não conheço nada no teatro mundial que se compare com isso". Nelson conhece o diretor e tem iníciio a epopéia do grupo Os Comediantes: oito meses de ensaios, oito horas por dia. Às 20h30 do dia 28 de dezembro de 1943, os portões do Teatro Municipal foram abertos e 2.205 espectadores viram a peça. Duas horas depois, o silêncio foi total na platéia. Nos bastidores ninguém sabia o que fazer. Ziembinski, entre palavrões em polonês, manda subir o pano. Os artistas surgem e o aplauso é ensurdecedor. O diretor aparece e o teatro delira. Alguém grita na platéia: "O autor, o autor!". Nelson estava escondido em um camarote, lutando contra a dor de sua úlcera, e não foi visto por ninguém. Disse, depois, que sofreu naquele momento, sentindo-se "um marginal da própria glória".

13. Apesar da fama que lhe deu, ele continuava sendo mal pago pelo O Globo Juvenil. Em fevereiro de 1945 é convidado por David Nasser, de O Cruzeiro, para uma conversa com Freddy Chateaubriand. A oferta era inacreditável: cinco contos de réis. Nelson foi para seu novo emprego: diretor de redação das revistas Detetive e O Guri. Como a função lhe tomava pouco tempo, o autor ficava perambulando pela redação da revista O Cruzeiro, que era no mesmo andar. Sempre procurando fazer "bicos" que permitissem um ganho extra soube que Chateaubriand estava querendo comprar um folhetim francês ou americano para O Jornal, que estava com uma tiragem de apenas 3 mil exemplares por dia e sem anúncios. Nelson ofereceu-se para escrever o folhetim. Daí nasceu Suzana Flag e "Meu destino é pecar". Quando a história terminou, o sucesso foi tão grande que foi lançado um livro pelas Edições O Cruzeiro. Calcula-se que a venda tenha ultrapassado a 300 mil livros. Isso provocou o começo de outro folhetim, "Escravas do amor", cujo sucesso também foi retumbante.

14. Em março de 1945 é atacado, novamente, pela tuberculose. Começa a escrever, então, "Álbum de família". Em fevereiro de 1946 o texto é submetido à censura federal e os censores ficam de cabelos em pé. A peça foi proibida de ser encenada. As opiniões se dividiam entre os intelectuais, os críticos e os jornalistas da época, uns a favor da liberação, outros contra. Venceram os contra, pois a peça só foi liberada em 1965 e levada pela primeira vez em 1967. Outro sucesso de 1946 foi a publicação de "Minha vida", umaautobiografia de Suzana Flag. Como das vezes anteriores, além de publicada em O Jornal, virou livro e vendeu horrores. "Anjo negro" estréia em abril de 1948. Como sempre, gerou comentários polêmicos. "Senhora dos afogados" é proibida em janeiro de 1948. Com duas peças interditadas, o autor luta como um mouro para tentar liberá-las. Não conseguindo, escreve "Dorotéia", em 1949, que muitos consideram seu melhor trabalho teatral. Ainda em 1948 é publicado mais um folhetim, "Núpcias de fogo", ainda como Suzana Flag.

15. Em 1949 Chateaubriand vai comandar o jornal Diário da Noite e leva Nelson consigo. Para trás fica Suzana Flag, que o autor não aguentava mais. Em seu lugar surgiu Myrna, uma nova máscara feminina. A diferença é que Myrna respondia a cartas de leitoras. Em 1950 o autor dá adeus a Chateaubriand e aos Diários Associados e fica esperando convites de outros jornais. Ficou um ano esperando...Nesse período, salvam a família as economias de Elza e um "bico" no Jornal dos Sports, de seu irmão Mário Filho. No ano seguinte sai do buraco e vai para a Última Hora. Em junho Nelson estréia uma nova peça, "Valsa nº 6", um monólogo estrelado por sua irmã Dulce. Ficou quatro meses em cartaz e foi outra desilusão para seu autor. Samuel Wainer, dono do jornal Última Hora, propõe ao autor que escreva, com pagamento extra, uma coluna diária sobre um fato real. Poderia se chamar "Atire a primeira pedra", mas Nelson sugeriu "A vida como ela é". O sucesso foi estrondoso. Em 1951 relançou Suzana Flag em "O homem proibido".

16. Em 8 de junho de 1953 estréia no Teatro Municipal a peça "A falecida". Nessa época Nelson mantinha um romance com Yolanda, secretária de um radialista da Rádio Mayrink Veiga. Esse caso durou cinco anos e rendeu três filhos: Maria Lúcia, Sônia e Paulo César, que ele não reconheceu como seus. Com tudo isso acontecendo, o autor produziu o último folhetim de Suzana Flag, "A mentira", publicado no semanrário Flan, lançado por Samuel Wainer.

17. "Senhora dos afogados" é encenada no Rio, em 1954, com direção de Bibi Ferreira. A platéia, ao final, dividiu-se e uma parte gritava "Gênio" e a outra "Tarado". O autor não aguentou e reagiu à platéia, gritando do palco: "Burros! Burros!".

18. "Perdoa-me por me traíres" teve, também, problemas de liberação com a censura, em 1957 - sofreu cortes. Outra surpresa ocorreu na estréia: Nelson interpretava o personagem Raul. Mais uma vez as vaias e os que aplaudiam pediam para o autor falar. Ele não se fez de rogado: "Burros! Zebus!". Ninguém esperava, mas aconteceu: um tiro! Na discussão entre prós e contras, o vereador Wilson Leite sacou seu revólver e deu um tiro para amedrontar alguém que o havia chamado de "palhaço". Tumulto geral. No dia seguinte a censura proibiria a peça.

19. "Viúva, porém honesta" estreou em 13 de dezembro do mesmo ano. Dizem que nela o autor procurava atingir aos críticos que atacaram "Perdoa-me por me traíres". Um dos atores era Jece Valadão, cunhado do autor. Dercy Gonçalves estréia "Dorotéia" em São Paulo. Ficou um mês em cartaz. Nelson não gostava dos "cacos" que a atriz introduzia no texto.

20. Em 1958 estréia "Os sete gatinhos", também com Jece Valadão no elenco. Apesar de malhar o presidente da República da época, Juscelino Kubitschek, Nelson vai até ele pedir um emprego. Consegue um cargo de tesoureiro em um instituto de aposentadoria e pensões (IAPETEC), mas é reprovado no exame de vista. Pede, então, a vaga para Elza. Juscelino queria agradar Mário filho e a nomeia.

21. O autor teve sério problema de vesícula, tendo de se submeter a uma operação de alto risco. De agosto de 1959 a fevereiro de 1960, centenas de milhares de leitores acompanharam a história de Engraçadinha e sua família em "Asfalto Selvagem". Foram publicados dois livros, intitulados: "Engraçadinha - seus amores e seus pecados dos doze aos dezoito" e "Engraçadinha - depois dos trinta".

22. O autor almoçava com sua mãe quase todo dia. Tomava o ônibus na Central do Brasil e ia até o Parque Guinle, em Laranjeiras. Um dos motoristas gostava de exibir-se: tinha 27 dentes na boca, mas eram todos de ouro. Nelson juntou esse fato ao bicheiro do submundo carioca, Arlindo Pimenta, e daí surgiu o "Boca de ouro".

23. A peça, como todas as demais, teve problemas com a censura. Foi levada para estrear em São Paulo e foi um retumbante fracasso. Ziembinski insistiu em viver o papel principal e não deu certo. Em janeiro de 1961, com Milton Morais como protagonista, "Boca de ouro" estréia no Rio com grande sucesso. Ainda no final de 1960 o autor entrega a Fernanda Montenegro e Fernando Torres a peça "Beijo no asfalto".

24. Nelson escreveu para Walter Clark a primeira novela brasileira de todos os tempos: "A morta sem espelho". Apesar do grande elenco - Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Sérgio Britto (que também respondia pela direção), Ítalo Rossi, Paulo Gracindo (que estreva na TV), música de Vinícius de Moraes - não foi autorizada a sua apresentação às oito e meia da noite. Foi empurrada para o horário das vinte e três e trinta. Walter Clark apelou, sem sucesso, até para Dom Helder Cãmara. Conseguiu, finalmente, autorização para o horário das dez horas, que não compensava financeiramente. Nelson foi convidado a encerrá-la rapidamente. Ficou claro nesse episódio que o problema era o nome do autor.

25. Na sua novela seguinte, "Sonho de amor", em 1964, seu nome apareceu, mas ela foi anunciada como uma adaptação de "O tronco do ipê", de José de Alencar. Sua última novela para a TV foi "O desconhecido", com direção de Fernando Torres e Jece Valadão, Nathalia Timberg, Carlos Alberto, Joana Fomm e outros, que só foi liberada graças ao poder de convencimento de Walter Clark.

26. Depois de ser renegada por muitas atrizes, "Toda nudez será castigada" entréia no dia 21 de junho de 1965 e é um sucesso. Os artistas são aplaudidos em cena aberta, os ingressos são avidamente disputados e fica em cartaz por seis meses no Teatro Serrador e em excursão pelo país. Após três anos de apresentações no Rio, São Paulo, Porto Alegre e Salvador, a peça é proibida em Natal.

27. Em 1966 o autor muda-se, a convite de Walter Clark, para a TV Globo. Em situação financeira apertada - como sempre - aceitou até aparecer como "tradutor" dos romances de Harold Hobins, publicados pela Editora Guanabara. Foi uma forma de receber mais dinheiro. A TV Globo era a "lanterna" na preferência dos telespectadores naquela época. No programa "Noite de gala" o autor apresentava o quadro "A cabra vadia", onde entrevistava pessoas. O primeiro foi João Avelange, presidente da CBD - Confederação Brasileira de Desportos.

28. Nessa época é chamado por Carlos Lacerda, ocasião em que é informado da criação da editora Nova Fronteira. Lacerda, que o malhou por tanto tempo, pediu-lhe um romance e deu-lhe um cheque de dois milhões de cruzeiros. Era algo em torno de 900 dólares, mas para quem estava pendurado, foi ótimo. Ele escreveu "O casamento". Quando Lacerda leu o livro, ficou assustadíssimo. Era um carnaval de incestos e perversões às vésperas de um casamento. Vendeu-o para Alfredo Machado, da Editora Eldorado. O livro vendeu 8 mil exemplares nas primeiras duas semanas de setembro de 1966, empatando com as vendas do novo romance de Jorge Amado, "Dona Flor e seus dois maridos". A morte de seu irmão, Mário Filho, impediu por algum tempo que ele fizesse a divulgação da obra. Quando reanimou, o livro teve sua venda proibida pelo ministro da Justiça, Carlos Medeiros Silva. Sua venda foi liberada nocamente em 1867.

29. No dia 21 de fevereiro de 1967, o prédio onde Paulo Rodrigues, irmão de Nelson, morava em Laranjeiras, desabou devido às chuvas. Morreram Paulinho, a esposa, filhos e mais alguns parentes que lá se encontravam para festejar o aniversário da cunhada do escritor. Em dezembro desse mesmo ano a viúva de seu irmão Mário se suicida.

30. Raphael de Almeida Magalhães, que já atuara como advogado de Nelson, é eleito governador do Estado da Guanabara. E consegue, finalmente, liberar "Álbum de família", que estava interditada desde 1946. Só em julho de 1967 foi levada à cena e, apesar do carrossel de incestos, foi aplaudida no final. Já não tinha o impacto de tempos atrás. No jornal O Globo passa a publicar "À sombra das chuteiras imortais" e "As confissões", cada uma patrocinada por um banco. Como recebia uma comissão por esses patrocínios (mais que o dobro de seu salário), estabilizou sua situação financeira. A primeira "Confissão" foi publicada em 4 de dezembro de 1967. Uma de suas manias era implicar com as pessoas conhecidas e com os amigos. Era do seu estilo alimentar-se periodicamente de certas obsessões. Como dizia Cláudio Mello e Souza, Nelson era a "flor de obsessão".

32. A partir de 1970 a ditadura militar endurece. Nelson, conhecido e admirado pelos militares, luta para tirar da prisão Hélio Pellegrino e Zuenir Ventura. Em 1972 começa nova luta: seu filho Nelsinho é um dos terroristas mais procurados pelas forças armadas. "Prancha" (seu codinome) foi apanhado em 30 de março de 1972. Dois anos antes, quando seu filho já vivia na clandestinidade, Nelson consegue com o presidente da República, General Medici, que ele saísse do país. Nelsinho não aceita o privilégio. Apesar disso, devido a seu prestígio e contatos com os militares, era muito procurado para ajudar pessoas em apuros com o regime militar. De 1969 a 1973 ele teve participação ativa na localização, libertação ou fuga de diversos suspeitos de crimes políticos. Após a prisão de Nelsinho, começa a luta para localizá-lo e procurar mantê-lo vivo, pois a tortura corria solta.

32. Nelson escreve "Anti-Nelson Rodrigues" no final de 1973. Em 1974, a peça fazia bela carreira no teatro do Serviço Nacional do Teatro. O autor faz alguns exames e é levado de imediato para São Paulo para ser operado de um aneurisma da aorta. Passou por duas operações, quase morreu, retornou ao Rio e, apesar de terminantemente proibido pelo médico, voltou a fumar. Em abril de 1977 é internado com uma arritmia ventricular grave e nova insuficiência respiratória.

33. O autor escreveu sua grande e última peça - "A serpente" - em meados de 1979, pouco antes de seu filho Nelsinho iniciar greve de fome com 13 companheiros, os últimos presos políticos cariocas, com a finalidade de transformar a anistia ampla em anistia total e irrestrita. Finalmente, no dia 23 de agosto, dia do aniversário do autor, Nelsinho é autorizado a deixar a prisão e assistir ao nascimento da filha Cristiane. No dia 16 de outubro, Nelsinho recebeu a liberdade condicional, mas não pôde ver seu pai: estava inconsciente no Hospital Pró-cardíaco. Nelson Rodrigues faleceu na manhã do dia 21 de dezembro de 1980, um domingo. No fim da tarde daquele dia ela faria 13 pontos na loteria esportiva, num "bolo" com seu irmão Augusto e alguns amigos do Globo. Dois meses depois, Elza cumpriu seu pedido - de, ainda em vida, gravar o seu nome ao lado do dele na lápide, sob a inscrição: "Unidos para além da vida e da morte. É só".
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Os trechos foram selecionados pela professora Elza de Andrade, extraídos do livro "Anjo pornográfico", de Ruy Castro. 
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