sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Constantin Stanislavski

Por Odette Aslan


          É difícil, com a distância de três quartos de século e através de obras teóricas traduzidas de maneira incompleta, reconstituir cronologicamente os meandros seguidos por Stanislavski ao longo de suas pesquisas. Como todo experimentador, conheceu hesitações, mudanças de caminho; nem sempre teve tempo de ordenar tudo e alguns de seus escritos ainda não chegaram até nós.

          Nessas condições, parece-nos arbitrário cindir em dois períodos a concepção de seu ensinamento, segundo tente partir da "composição interior" ou da "composição exterior" da personagem. Digamos que, no fim de sua carreira, Stanislavski parece ter encarado com outros olhos a expressão corporal. 

          Em seu esforço de esclarecer os problemas do ator, Stanislavski, que não era um homem de ciência, usa com freqüência um vocabulário impreciso; seus tradutores procuraram equivalentes, que nem sempre são termos teatrais que satisfazem. Evitaremos as palavras objetivo, superobjetivo ou objetivo físico. 

          Um mal-entendido vem da palavra "sistema" que ele empregou, mas cuja má interpretação recusou: "Esse método não foi nem combinado nem inventado por ninguém. É baseado nas leis da natureza". Não é um livro de receitas, "é todo um estilo de vida no qual é preciso que você creia e que se eduque durante anos". 

          Um estilo de vida. Eis o que é menos transmissível sem a presença do Mestre. O que talvez explique por que nada ou quase nada tenha sido tentado na França para ensinar essa concepção do processo do ator. Fora Pierre Valde, cujo ensino se inspira nos princípios de Stanislavski, e Antoine Vitez, que os utiliza juntamente com outros métodos, não creio existirem muitos cursos em que seu nome seja apenas mencionado.

          Aplica-se o "sistema" na URRS e em todos os países do Leste ou, pelo menos, a gente de teatro se inspira nele; só é conhecido na Inglaterra e nos Estados Unidos através da deformação a que o submeteram os adeptos da psicanálise, notadamente Lee Strasberg no Actors Studio. 

          A título de cotejo com a formação tradicional, isolamos inicialmente o trabalho vocal e gestual.

A VOZ    

          Quando foi trabalhar com seus primeiros atores, fosse porque não tivessem problemas ou porque tivessem recebido formação anterior, parece, a partir de suas anotações, que Stanislavski não se interessou com os problemas de voz e dicção;. voltou a eles mais tarde com alunos mais jovens, indicando-lhes o que ele próprio havia praticado no começo de sua carreira.

          "A pronúncia exige um treinamento e uma técnica muito próximos do virtuosismo"; ele sublinha a beleza da linguagem, detém-se na palavra de valor, na pontuação, nas pausas, no ritmo; recorre à fonética e dá a seus alunos um professor que lhes coloque a voz. Ele mesmo começara por estudar canto e recomenda aos atores exercitarem-se, se não ao som do piano, ao menos com diapasão.

          Devem ter senso musical e introduzir em sua fala uma espécie de melodia. Aprecia a voz na máscara, observa os sons produzidos pela garganta, pelo nariz, peito, laringe e outras caixas de ressonância. "Um som que sai dos dentes ou que é projetado contra o osso, isto é, o crânio, adquire força e timbre", ensinara-lhe um cantor. Ele conhece o perigo de uma dicção cuidada demais, mas deseja que a arte de dizer comunique as nuanças mais impalpáveis do pensamento e do sentimento. Chega ao ponto de estabelecer esquemas de entonação.

          Todos esses detalhes nos eram desconhecidos até o aparecimento de A Construção da Personagem. Ora, Vassili Toporkov, que representou Tchichilov em Almas Mortas, conta que o primeiro ensaio (quatro horas no relógio) se resumiu em fazê-lo dizer apenas uma frase: "Chegando a esta cidade, julguei ser meu dever vir apresentar-vos os meus respeitos". Vassili Sakhnovski confirma essa prática: "Stanislavski desmembrava a frase para que o ator pusesse acentuações onde fosse necessário e exprimisse o pensamento corretamente, ou então trabalhava a dicção do ator".

          Em 1924, exigia de um ator "uma voz forte, bem treinada, de timbre agradável ou pelo menos expressivo, uma dicção perfeita, plasticidade de movimento (sem ser posudo), rosto belo e versátil, boa silhueta e mãos expressivas. Observa que os atores latinos falam em "maior" e os russos em "menor", o que os atrapalha para interpretar Molière ou Goldoni. 

O GESTO

          Os alunos praticam ginástica sueca para tornar os músculos e articuações flexíveis; acrobacias que desenvolvem a agilidade, a capacidade de decisão; a dança, que com sua leveza corrige o rigor "militar" da ginástica; a dança clássica alarga os gestos e melhora a posição dos braços e das pernas (graças à posição en dehors), exercita os pulsos e os tornozelos (mas é preciso evitar o maneirismo das bailarinas).

          Stanislavski observou que a dança clássica ensina a manter melhor a postura das costas, a sentir a coluna vertebral bem assentada na vértebra mais baixa, o que proporciona um sólido suporte ao torso. Há ainda as aulas de movimento em que as moças devem vir com sapatos de salto baixo ou sem salto. Esse treinamento corporal aplicado ao ator assemelha-se bastante ao de Dullin.

          Quanto mais nos perguntamos sobre a energia interna que preside o movimento, mais encontramos em exercícios com música o senso da rítmica dalcroziana (embora o nome de Dalcroze não seja mencionado, a pesquisa é idêntica). Por fim chega-se aos gestos que o ator pode executar em um papel. Stanislavski exige sobriedade e controle: 

          "Todo movimento que, fora do teatro, possa ser um movimento espontâneo e familiar ao ator o separa da personagem quando atua em cena. Tanto os gestos como os sentimentos não devem ser pessoais do ator, mas 'análogos aos da personagem' e econômicos".

          Esse ensino do gesto foi consignado tardiamente em A Construção da Personagem, publicado em 1929-1930. Vsevolod Meyerhold, que trabalhou no Teatro de Arte, deixou-o em 1902 e voltou em 1905 para ali fundar o Primeiro Estúdio; contribuiu certamente para atrair a atenção de Stanislavski para a importância do corpo. Nos artigos reunidos em 1908 (O Livro sobre o Teatro Novo), Meyerhold diz particularmente:

          O teatro naturalista [entende-se teatro de Stanislavski] vê no rosto o principál meio de expressão do ator, negligenciando todos os outros. Ignora os encantos da plasticidade e não exige de seus atores um treinamento corporal. Quando criou uma escola, esqueceu que a cultura física deveria ser ali a matéria principal de ensino.

           Stanislavski apreciava mais o jeito dos atores franceses revelarem o ritmo interior de uma personagem por um leve movimento das mãos, seu modo de "falar com os olhos", sem gestos. Desprezaria a técnica acrobática do ator meyerholdiano, pouco acrobata e menos ainda ator. 

          Os principais pontos do trabalho de Stanislavski podem ser resumidos da seguinte forma:

. Luta contra o clichê, a má "teatralidade", busca da sinceridade; 

. Estabelecimento das vontades da personagem para motivar o jogo do ator;

. Clima favorável à emoção cênica, meios de desencadear uma emoção verdadeira no ator;

. Estabelecimento de um subtexto para exprimir nas peças de Tchecov o que se encontra nas entrelinhas, nos silêncios, para nutrir o texto.


REAÇÃO CONTRA A MÁ "TEATRALIDADE"

           A formação do ator, a concepção da atuação por Stanislavski se rebelam contra os princípios tradicionais, as banalidades e o exibicionismo em voga nos teatros russos. No tempo de Pedro, O Grande, lembra Nicolau Evreinoff, o ator punha o público a par de seus estado afetivo e depois se exprimia com gestos demonstrativos. Por exemplo, para traduzir a cólera "rasgava as vestes, ia e vinha como uma fera enjaulada, virava os olhos furibundos".

          O escasso número de ensaios incitava os atores a usarem estereótipos. Declamavam com ênfase e sorviam às vezes na embriaguez o gênio da inspiração. Exteriorizavam-se até a histeria, abandonando-se ao gesto eslavo do sofrimento, utilizando efeitos fáceis, derramando suas lágrimas com abundância. Foram os autores que reclamaram maior naturalidade.

           Puschkin enaltece a verdade das paixões, Gógol pede a verdade e a naturalidade na palavra e na expressão corporal. Nemirovicho-Dantchenko, a quem Stanislavski se associou, reclama uma dicção e uma mímica vivas, não "representadas", mas correspondentes a movimentos psicológicos e provenientes da individualidade do ator, isto é, sua imaginação, sua hereditariedade, seu inconsciente".

          Isso vai no sentido da evolução do século XIX. Desenvolveu-se o espírito científico. A lantejoula teatral, os dourados e o artificialismo começam a chocar. As denúncias de Zola (O Naturalismo no Teatro), ou de Bec de Fouquières (A Arte da Encenação), as excursões dos Meininger (troupe alemã de George II, duque da Turíngia), abalaram o ilusionismo em favor do realismo.

          O teatro passa a prender-se à exatidão histórica, tanto em relação aos cenários quanto aos figurinos e acessórios. Antoine apresenta no palco um "pedaço de vida". Seu ator deve viver uma ação e não mais representar uma ficção. O efeito vocal gratuito é suprimido, às vezes se fala em voz baixa em lugar de clarinar tudo. É proibido avançar até o proscênio para declamar um "bife" de frente, acontecem momentos em que o ator representa de costas. 

           Imagina-se uma quarta parede ao nível da cortina, definida por Jean Jullien, uma parede "transparente para o público, opaca para o comediante". O ator senta, anda, comporta-se em cena como uma personagem, como um homem da vida real e não como um membro da Comédie-Française.

           Stanislavski, por sua vez, combateu a rotina (nada de clichês convencionais), o cabotinismo (nada de vedetes, nada de efeitos convencionais), a mentira teatral (nada de emoção falsa, nada de cenários com truques). Além de mergulhar numa documentação meticulosa, fazia seua atores e aderecistas conhecerem os locais verdadeiros em que se passava a ação da peça.

          Graças ao cenário realista, o ator esquece que está em cena; age somente em relação direta com seus parceiros de cena, não pensa nos espectadores, nem lhes dá piscadelas acumpliciadoras. Em vez de acessórios de papelão em que mal toca, dispõe dos próprios objetos com os quais sua atuação se relaciona. Tais objetos são parte integrante da ação cênica e lhe dão segurança. Estão prontos desde os ensaios para que o ator se habitue com eles.

          Stanislavski parece querer resolver um duplo problema: levar o espectador a acreditar na realidade daquilo que é apresentado em cena e incitar o ator a acreditar nela. Não confia na imaginação e propõe verdadeiros suportes para que o comediante confunda a vida da peça com a própria vida. Entretanto, chega à noção de uma teatralidade cênica, a qual, se não respeita mais inteiramente a estrita verdade histórica, ajuda o ator a crer  em sua personagem, mas sem ser enganado pelo termo realismo:

          "Na vida cotidiana, a verdade é o que existe realmente, o que se conhece. Enquanto em cena, ela é constituída de coisas que não existem realmente, mas que poderiam ocorrer".

          Depois de haver dedicado um grande cuidado à verossimilhança dos rostos e pensado que o fato de se maquiar, de vestir o figurino exato da personagem ajudava o ator a tornar-se a personagem, tal abordagem pareceu-lhe insuficiente. A verdade deve provir de mais longe, de algo mais profundo: é preciso encontrar a verdade interior.

          Em Ralé estamos diante de personagens que Gorki não definiu muito, que têm apenas uma frase ou nada a dizer. Stanislavski as recheia, dá-lhes uma biografia, um passado. Ele as torna críveis ao comediante infundindo-lhes uma vida orgânica. A personagem não existe apenas no momento em que entra em cena ou no momento em que tem uma réplica a dar, existe antes e depois, tem uma continuidade.

          Antes de projetar a personagem em cena, o ator precisa elaborar a concepção global dessa personagem e desenvolver um mecanismo consciente para traduzi-la em público. Concepção e mecanismo fazem parte do que se chama o Sistema. Ora, dissemos que o pseudo-sistema de Stanislavski era antes de mais nada um "modo de vida". A explicação de seu trabalho cênico é rigorosamente inseparável de sua ética.

BUSCA DE UMA ÉTICA

          Jovem ator, Stanislavski se pergunta sobre seu métier, observa seus professores, os atores famosos, seus companheiros de alenco e, mais tarde, seus alunos. Tenta compreender apaixonadamente o processo interior do jogo teatral. Redige um diário desde os 17 anos; toma notas ao longo de toda sua carreira. Extraíram-se daí oito volumes de 500 páginas.

          Desajeitado em seus movimentos no começo, contraído em cena, atrapalhado por uma voz rouca, procura assiduamente um meio de progredir, de ajudar os outros a progredir. Consciencioso, trabalhador, lembra-se do rigor dos Meininger, instaura uma disciplina estrita, exige qualidades morais: na vida particular e profissional, o aluno, o ator, deve ser probo, simples e modesto. Ingressa no teatro de Stanislavski como se ingressasse numa religião, para dar a cada dia o melhor de si, para merecer um dia chegar ao palco.

          Stanislavski não quer recrutar os que consideram a  carreira teatral somente como meio de tirar proveito de sua beleza ou ganhar dinheiro. Proíbe rivalidades mesquinhas. Não há para ele nem atores nem figurantes. Elimina a palavra figurante e a substitui pela palavra colaborador, Não quer analfabetos e desenvolve a cultura geral de seus alunos. Seus atores devem apresentar qualidades de imaginação e personalidade, mas na atuação precisam fundir-se ao conjunto: não representam "um papel", representam "uma peça", mesmo se tiverem poucas falas a dizer.

          Desde o despertar, devem pensar na personagem que encarnarão à noite. Se alguém chegar atrasado paga multa. Não tolera que se ensaie a meia voz ou que se deixe a sala de ensaios sem autorização. O namoro é proibido, assim como qualquer conversa alheia ao trabalho. Ele próprio leva uma vida regrada, nunca bebe álcool. Durante a representação o teatro fica em "estado de alerta". Nada deverá estorvar o espetáculo; Stanislavski, ao sair de cena, evita fazer barulho no assoalho. A calma deve reinar nos bastidores para favorecer a concentração dos atores.

          Stanislavski é aberto, generoso. Crê no bem. Quer produzir um teatro acessível a todos e difundir a beleza. Ensina seus comediantes a ver, ouvir e entender o belo: "É um hábito que eleva o espírito". Lembra o Tio Vânia, de Tchecov: "No ser humano tudo deve ser belo, seu rosto, suas roupas, sua alma, seus persamentos". 

          Esse culto à beleza, essa nobreza natural de Stanislavski, são perceptíveis em suas interpretações de ator e no seu ensinamento. Liga-se à alma, à vida interior. Ele a traduz com uma musicalidade que é pessoal e que tocou todos os críticos. Representar um papel é "criar a vida profunda de um espírito humano e exprimi-la de forma artística".

          Trabalhando para um espectador russo sensível ao drama, quer comevê-lo, fazê-lo experimentar emoções, enriquecer sua vida interior. Honesto, o próprio comediante deve ficar ele próprio emocionado e não interromper o encanto da representação fazendo reverências a cada passagem para granjear aplausos. Os agradecimetnos durante a ação foram suprimidos e em seguida também aqueles ao fim de cada ato.

          Essa caminhada rumo à austeridade jamais se desviou. Aperfeiçoando-se ao longo de sua carreira, o ator ideal, segundo Stanislavski, procede todo dia à sua toalete moral para acolher melhor sua personagem, para favorecer o estado emotivo e criador. É uma tarefa sem fim. "Você não age como um Tchichikov", disse ele a seu intérprete de Almas Mortas. "Daqui a dez anos talvez o consiga. Dez anos mais tarde você será a personagem Tchichikov e com mais dez anos você representará Gógol".

A EMOÇÃO

          O ator não deve abandonar-se à emoção sem controle, deve dominá-la. Já em 1888, Stanislavski havia observado: "Obtemos melhor resultado quando nos dominamos sem nos abandonarmos totalmente ao papel, e somos medíocres quando nos preocupamos com a impressão que causamos no público". 

          Mas o ator que se controla demais arrisca-se a bloquear qualquer emoção. Eis o que Stanislavski aconselha a fazer para que a emoção requerida se produza no momento desejado, por ocasião da representação: determinar as ações precisas para executar no decorrer do papel.

          O ator deve saber por que está lá, ou porque ele entra, o que vem fazer, o que quer de seu parceiro, como consegui-lo. Tudo isso está incluso no texto, que é preciso decodificar em função das intenções, das vontades da personagem. Falar é para Stanislavski uma ação verbal; há outras ações no interior de uma cena.

           Essas pequenas ações múltiplas se integram na "linha contínua de ações" da personagem. Para conceber seu papel, o ator usa verbos. Age sobre, age contra, dirige-se a. É convencendo o parceiro que convence o público. Quando mais obstáculos encontra, mais seu jogo reforça e se torna probante. Seu itinerário no papel é uma seqüência de conflitos a resolver, de obstáculos a transpor. Nada é fácil em cena, nada é gratuito. Tudo deve ter um objetivo, ser justificado.

          O estado do ator em cena, diante de uma ribalta iluminada e de espectadores, é um estado contra a natureza, que impede o comediante de sentir livremente as emoções de sua personagem. Um dia ele tem a sorte de que a inspiração venha, outros dias ela falha e o comediante torna-se execrável. É preciso dar meios ao ator de ser igual toda noite, com hora marcada; é preciso que ele possa voluntariamentefazer brotar dentro de si emoções para que esteja apto a expressá-las.

          Isadora Duncan dizia que antes de entrar em cena precisava acionar um motor na alma. Stanislavski procurou um motor semelhante para o ator. Partindo da biografia da personagem, de seu comportamento, das circunstâncias da ação, o ator procede "como se", entra em um processo psicológico que desencadeia nele o sentimento real, ele "vive" o acontecimento e suas conseqüências, em vez de contentar-se em reproduzir a manifestação exterior de um sentimento que ele não sente.

          Ela instaura uma motivação verdadeira, ele se põe em jogo de atuação. Tudo nele contribui para esse esforço, não apenas seu pensamento e sua fala, mas seus nervos, suas glândulas, sua respiração. O psíquico arrasta o físico, é a escola do "reviver", oposta à escola da "representação". Mediante esse processo o comediante pode reviver o papel centenas de vezes, sem prejuízo para a qualidade de sua emoção (cumpre, aliás, desempenhar um papel centenas de vezes para interpretar sua quintessência). 

          Para desencadear o subconsciente, Stanislavski utiliza a memória emotiva. A lembrança de uma experiência pessoal do comediante pode ajudá-lo em cena a desencadear uma emoção análoga àquela que deve experimentar a personagem. Com a condição de que essa emoção tenha sido forte o suficiente para poder reproduzir-se com intensidade. É uma transferência. Em outros termos: Stanislavski, para provocar uma emoção sincera, recorre a um recurso enganoso.

          Se a sensibilidade permanece rebelde a todos esses condicionamentos, Stanislavski oferece uma bóia de salvação: é preciso partir da "composição exterior". Não só maquiar-se e vestir-se como a personagem, mas andar, comportar-se como ela, executar ações físicas para desencadear a emoção segundo a fórmula: eu choro e acabo ficando triste. Ou ainda: eu corro e acabo ficando com medo.

          Tudo se passa como se Stanislavski trabalhasse comediantes pouco dotados, carentes de imaginação ou de personalidade. Cumpre dizer a seu favor que seu teatro defrontou-se com uma dramaturgia nova. Tchecov tinha sido declarado irrepresentável. O próprio Stanislavski exclamara, ao ler A Gaivota: "Será possível efetivamente representar isso? Não entendo nada". "Os caracteres pareciam-lhe incompletos", explica Nemirovitch-Dantchenko, "as paixões ternas, as palavras, talvez simples demais, as personagens sem oferecer bom material aos atores..."

           Sem conhecer nada da vida no campo, Stanislavski não sentia a imensa sedução do lirismo com que Tchecov cobre essa vida cotidiana. Mas finalmente compreendeu que cada palavra de A Gaivota encobria um sentido oculto, que cada silêncio traía um estado de alma. Era preciso obrigar o intérprete a tomar consciência do que havia para além das palavras, a construir o universo tchecoviano - não com heróis, mas com personagens comuns, não com cenas de efeito, mas com fragmentos de conversas, silêncios; em outros termos, tempos que se acreditavam "mortos".

          Ações a executar, lembranças a evocar, movimentos cênicos, acessórios a manipular, constituem a partitura do papel, ou subtexto, o filme interior de imagens que provocam os sentimentos. A isso chamaríamos o que corresponde a linha do papel e o processo mental do comediante. O subtexto proveio das peças de Tchecov, cujas falas parecem banais. Com um subtexto rico, quase não há mais necessidade de se entenderem as palavras.

          Como exercício, Stanislavski não diz ao aluno que papel ele vai estudar. Só lhe fornece o "canevas" (o que é semelhante aos exercícios de improvisação de Copeau). O aluno constrói sua linha de ações, insere-se nas circunstâncias dadas e com esse subtexto diz frase suas (improvisadas) ou simplesmente tatati-tatá...Depois lhe dão o texto verdadeiro do autor para dizer.

          Os momentos decisivos das ações do subtexto devem coincidir com o texto como um  decalque. Para o estudo dos gestos, Stanislavski manda retomar o mesmo episódio sentado, mãos sob o acento para impedir a gesticulação inconsciente. O aluno exterioriza pelo olhar, pela mímica, pela entonação, pelo jogo dos dedos quando suas mãos são liberadas. Enfim, preocupa-se em aproximar-se da personagem. No curso de suas últimas pesquisas, Stanislavski propunha-se a encontar a chave do ritmo, que, suspeitava, devia agir diretamente sobre o sentimento.

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Extraído de O Ator no Século XX, Editora Perspectiva.
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