Sobram divergências em relação à verossimilhança e à fidelidade do universo do teatro representado no seriado
Toda caricatura é sempre uma oportunidade para reflexão. Dependendo da combinação de tintas, diferentes características são ressaltadas. Para que elas funcionem aos olhos de quem as contempla, é preciso que os defeitos e qualidades sejam ilustrados com certo exagero. É dessa maneira que os personagens do meio teatral têm encarado a minissérie "Som&Fúria", que estreou na Rede Globo no último dia 7: como um retrato romantizado e exagerado da classe. É um exercício de metalinguagem, o "povo" do teatro ilustrando o próprio ofício, ao mesmo tempo doloroso e prazeroso. Afinal, artistas são "a síntese e a crônica da humanidade", como diz o próprio Shakespeare, numa das falas de Hamlet.
Se por um lado, atores, diretores e produtores são unânimes em elogiar a qualidade da atuação dos personagens, e da direção e adaptação de Fernando Meirelles, por outro, sobram divergências em relação à verossimilhança e à fidelidade do universo do teatro representado no seriado. "É um luxo enorme termos um Shakespeare, as agruras de uma companhia de teatro e os tormentos dos atores exibidos na TV aberta. A série é crível e pertinente, mas não condiz com a realidade do País", diz o diretor Gabriel Villela, que já montou o espetáculo "Romeu e Julieta", de William Shakespeare, no Globe Theatre, teatro construído em 1599, que abrigava as peças do autor inglês em Londres.
A falta de compatibilidade do seriado com os parâmetros brasileiros ocorre justamente pelo fato de não termos aqui uma companhia integralmente estatal. "A representação dos pequenos grupos de teatro é fiel. Mas o conflito entre os menores e aquela companhia fixa do Municipal é arbitrário. Esse pêndulo não existe", confirma a crítica teatral Barbara Heliodora, uma das mais respeitadas especialistas e tradutoras das peças de Shakespeare no Brasil.
"Som&Fúria", dividido em 12 capítulos, é uma adaptação tropicalizada do seriado canadense "Slings&Arrows", concebido originalmente em 2003. Na série brasileira, que tem como pano de fundo a obra de Shakespeare, Oliveira (Pedro Paulo Rangel), um diretor decadente de uma companhia de teatro patrocinada pelo Estado, com sede no Teatro Municipal de São Paulo, morre atropelado por um caminhão frigorífico, lotado de presuntos, e, mergulhado no universo de Hamlet, passa a assombrar o novo diretor Dante (Felipe Camargo), então tutor de uma minúscula trupe que luta para não fechar as portas.
Se existe uma certa dificuldade para as pessoas que vivem o teatro conceberem uma companhia estatal aqui no Brasil, não se pode dizer o mesmo da tentativa do seriado de revelar ao público a diversidade do cotidiano que envolve a profissão. Surtos de estrelismos do diretor, cancelamentos de ensaios, fofocas e intrigas dentro do próprio elenco e conflito de egos. "É interessante para as pessoas verem como funciona esse universo, mesmo que as relações e os conflitos sejam apresentados de forma romantizada. Uma reflexão que o próprio teatro precisa fazer", diz o diretor Sérgio Ferrara. "É uma comédia inteligente, que vai de encontro à curiosidade das pessoas em relação aos bastidores. Acaba por mostrar que não vivemos em camarins cheios de plumas, e que tal atriz não pode ser incomodada por estar se concentrando", completa a atriz Denise Fraga.
Outro aspecto, abordado em forma de alegoria, é a falta de verba de pequenos grupos - em oposição às grandes companhias, cujos diretores artísticos vendem a arte como um mero produto. Enquanto alguns personagens alimentam o sonho de viver o teatro como um ofício essencialmente artístico, caso da jovem Kátia (Maria Flor), outros, como o inoperante diretor financeiro da companhia do Municipal, Ricardo da Silva (Dan Stulbach), manipulado por Graça (Regina Casé), buscam fazer dos palcos uma fábrica de dinheiro. "Infelizmente nós não temos uma companhia estável e fixa como a do seriado. Mas serve para recuperar uma discussão saudável sobre essa espécie de funcionalismo público que não é nada bom para o teatro", diz Sandra Corveloni, atriz de teatro , vencedora do prêmio de melhor atriz de cinema no Festival de Cannes ("Linha de Passe").
A discussão levantada por "Som&Fúria" em relação ao dilema vivido por muitos atores e diretores remete à famosa frase de Bertolt Brecht: "Primeiro vem o estômago, depois a moral." Diante da dificuldade e das condições extremas enfrentadas pelos que tentam fazer teatro no Brasil, muitos profissionais da área se identificam com o seriado e com a frase de Brecht por já terem se deparado com a encruzilhada de optar por exercer a arte em sua essência ou seguir pelo caminho mais fácil e se vender às demandas das tendências comerciais. "O retrato das pequenas companhias, que lutam feito loucas para sobreviver, é fiel. A crise econômica vai ajudar a separar o joio do trigo. Quem não quiser fazer teatro de verdade vai acabar pulando fora", diz Barbara Heliodora.
Heliodora tem sido, ao lado Gerald Thomas, alvo de muitos comentários no meio artístico. Os personagens Oswald Thomas (Antonio Fragoso) e Bárbaro (Ary França) são referências claras ao diretor e à crítica teatral. "Essa história de atirar na direção de A, B ou C não tem relevância para o desenvolvimento da trama. A tradução das peças é horrível, com uma linguagem sem elegância, mas acho que eles têm se saído bem. A série é positiva, tem me agradado", comenta Heliodora.
É na verdade o que se vê na minissérie, já que a obra de Shakespeare serve como uma cama para os atores esparramarem suas intrigas e angústias, a exemplo de Hamlet. Tanto o título em português, "Som&Fúria", quanto o em inglês, "Slings&Arrows" (Pedradas e Flechadas), ambos extraídos de solilóquios shakespearianos, resumem à perfeição as mazelas do universo teatral. "Não sei se atualmente é assim, mas quando eu comecei nesta carreira, em 1964, tinha muito disso, havia fofocas e passadas de perna", lembra a atriz Beatriz Segall. "Os climas, os ensaios são bem reproduzidos, o cotidiano dos atores ali representado é muito real", complementa o produtor de teatro Germano Baía, que, durante anos, foi o "braço direito" do ator Paulo Autran.
As belas atuações de Felipe Camargo - que renasce após um longo período de ostracismo -, Andréa Beltrão e Daniel de Oliveira contribuem para que o público, como se adentrasse as coxias do Municipal, possa ter contato com o aspecto humanista da atividade teatral, conhecendo o lado complexo e difícil de uma profissão cercada por uma aura de luxo e celebração. "É a melhor obra que já vi na TV sobre o cotidiano dos atores, uma grande contribuição para mostrar essa forma de arte", diz o dramaturgo Alcione Araújo.
"Som&Fúria" escancara manias, patologias e incompletudes dos artistas do teatro, estimulando a reflexão sobre o ofício, como se estivessem diante de um espelho que há muito não contemplavam. Mesmo sendo "um seriado sobre teatro, dirigido por um diretor de cinema, que é transmitido na televisão", como declarou o ator Pedro Paulo Rangel após o lançamento de "Som&Fúria", a minissérie se destaca por ser voltada para o público leigo. "Gosto da linguagem do Meirelles porque prevê o espectador, não é apenas uma piração egocêntrica de um cineasta", destaca o diretor Gabriel Villela. Embora o seriado tenha registrado índices de audiência abaixo do esperado - em parte pelo horário ingrato que lhe é reservado na grade - seria interessante ver o universo teatral e a obra de Shakespeare representados na televisão aberta em novas temporadas de "Som&Fúria", seguindo os passos de "Slings&Arrows".
(Fonte: Bem Paraná, O Portal Paranaense.)
Toda caricatura é sempre uma oportunidade para reflexão. Dependendo da combinação de tintas, diferentes características são ressaltadas. Para que elas funcionem aos olhos de quem as contempla, é preciso que os defeitos e qualidades sejam ilustrados com certo exagero. É dessa maneira que os personagens do meio teatral têm encarado a minissérie "Som&Fúria", que estreou na Rede Globo no último dia 7: como um retrato romantizado e exagerado da classe. É um exercício de metalinguagem, o "povo" do teatro ilustrando o próprio ofício, ao mesmo tempo doloroso e prazeroso. Afinal, artistas são "a síntese e a crônica da humanidade", como diz o próprio Shakespeare, numa das falas de Hamlet.
Se por um lado, atores, diretores e produtores são unânimes em elogiar a qualidade da atuação dos personagens, e da direção e adaptação de Fernando Meirelles, por outro, sobram divergências em relação à verossimilhança e à fidelidade do universo do teatro representado no seriado. "É um luxo enorme termos um Shakespeare, as agruras de uma companhia de teatro e os tormentos dos atores exibidos na TV aberta. A série é crível e pertinente, mas não condiz com a realidade do País", diz o diretor Gabriel Villela, que já montou o espetáculo "Romeu e Julieta", de William Shakespeare, no Globe Theatre, teatro construído em 1599, que abrigava as peças do autor inglês em Londres.
A falta de compatibilidade do seriado com os parâmetros brasileiros ocorre justamente pelo fato de não termos aqui uma companhia integralmente estatal. "A representação dos pequenos grupos de teatro é fiel. Mas o conflito entre os menores e aquela companhia fixa do Municipal é arbitrário. Esse pêndulo não existe", confirma a crítica teatral Barbara Heliodora, uma das mais respeitadas especialistas e tradutoras das peças de Shakespeare no Brasil.
"Som&Fúria", dividido em 12 capítulos, é uma adaptação tropicalizada do seriado canadense "Slings&Arrows", concebido originalmente em 2003. Na série brasileira, que tem como pano de fundo a obra de Shakespeare, Oliveira (Pedro Paulo Rangel), um diretor decadente de uma companhia de teatro patrocinada pelo Estado, com sede no Teatro Municipal de São Paulo, morre atropelado por um caminhão frigorífico, lotado de presuntos, e, mergulhado no universo de Hamlet, passa a assombrar o novo diretor Dante (Felipe Camargo), então tutor de uma minúscula trupe que luta para não fechar as portas.
Se existe uma certa dificuldade para as pessoas que vivem o teatro conceberem uma companhia estatal aqui no Brasil, não se pode dizer o mesmo da tentativa do seriado de revelar ao público a diversidade do cotidiano que envolve a profissão. Surtos de estrelismos do diretor, cancelamentos de ensaios, fofocas e intrigas dentro do próprio elenco e conflito de egos. "É interessante para as pessoas verem como funciona esse universo, mesmo que as relações e os conflitos sejam apresentados de forma romantizada. Uma reflexão que o próprio teatro precisa fazer", diz o diretor Sérgio Ferrara. "É uma comédia inteligente, que vai de encontro à curiosidade das pessoas em relação aos bastidores. Acaba por mostrar que não vivemos em camarins cheios de plumas, e que tal atriz não pode ser incomodada por estar se concentrando", completa a atriz Denise Fraga.
Outro aspecto, abordado em forma de alegoria, é a falta de verba de pequenos grupos - em oposição às grandes companhias, cujos diretores artísticos vendem a arte como um mero produto. Enquanto alguns personagens alimentam o sonho de viver o teatro como um ofício essencialmente artístico, caso da jovem Kátia (Maria Flor), outros, como o inoperante diretor financeiro da companhia do Municipal, Ricardo da Silva (Dan Stulbach), manipulado por Graça (Regina Casé), buscam fazer dos palcos uma fábrica de dinheiro. "Infelizmente nós não temos uma companhia estável e fixa como a do seriado. Mas serve para recuperar uma discussão saudável sobre essa espécie de funcionalismo público que não é nada bom para o teatro", diz Sandra Corveloni, atriz de teatro , vencedora do prêmio de melhor atriz de cinema no Festival de Cannes ("Linha de Passe").
A discussão levantada por "Som&Fúria" em relação ao dilema vivido por muitos atores e diretores remete à famosa frase de Bertolt Brecht: "Primeiro vem o estômago, depois a moral." Diante da dificuldade e das condições extremas enfrentadas pelos que tentam fazer teatro no Brasil, muitos profissionais da área se identificam com o seriado e com a frase de Brecht por já terem se deparado com a encruzilhada de optar por exercer a arte em sua essência ou seguir pelo caminho mais fácil e se vender às demandas das tendências comerciais. "O retrato das pequenas companhias, que lutam feito loucas para sobreviver, é fiel. A crise econômica vai ajudar a separar o joio do trigo. Quem não quiser fazer teatro de verdade vai acabar pulando fora", diz Barbara Heliodora.
Heliodora tem sido, ao lado Gerald Thomas, alvo de muitos comentários no meio artístico. Os personagens Oswald Thomas (Antonio Fragoso) e Bárbaro (Ary França) são referências claras ao diretor e à crítica teatral. "Essa história de atirar na direção de A, B ou C não tem relevância para o desenvolvimento da trama. A tradução das peças é horrível, com uma linguagem sem elegância, mas acho que eles têm se saído bem. A série é positiva, tem me agradado", comenta Heliodora.
É na verdade o que se vê na minissérie, já que a obra de Shakespeare serve como uma cama para os atores esparramarem suas intrigas e angústias, a exemplo de Hamlet. Tanto o título em português, "Som&Fúria", quanto o em inglês, "Slings&Arrows" (Pedradas e Flechadas), ambos extraídos de solilóquios shakespearianos, resumem à perfeição as mazelas do universo teatral. "Não sei se atualmente é assim, mas quando eu comecei nesta carreira, em 1964, tinha muito disso, havia fofocas e passadas de perna", lembra a atriz Beatriz Segall. "Os climas, os ensaios são bem reproduzidos, o cotidiano dos atores ali representado é muito real", complementa o produtor de teatro Germano Baía, que, durante anos, foi o "braço direito" do ator Paulo Autran.
As belas atuações de Felipe Camargo - que renasce após um longo período de ostracismo -, Andréa Beltrão e Daniel de Oliveira contribuem para que o público, como se adentrasse as coxias do Municipal, possa ter contato com o aspecto humanista da atividade teatral, conhecendo o lado complexo e difícil de uma profissão cercada por uma aura de luxo e celebração. "É a melhor obra que já vi na TV sobre o cotidiano dos atores, uma grande contribuição para mostrar essa forma de arte", diz o dramaturgo Alcione Araújo.
"Som&Fúria" escancara manias, patologias e incompletudes dos artistas do teatro, estimulando a reflexão sobre o ofício, como se estivessem diante de um espelho que há muito não contemplavam. Mesmo sendo "um seriado sobre teatro, dirigido por um diretor de cinema, que é transmitido na televisão", como declarou o ator Pedro Paulo Rangel após o lançamento de "Som&Fúria", a minissérie se destaca por ser voltada para o público leigo. "Gosto da linguagem do Meirelles porque prevê o espectador, não é apenas uma piração egocêntrica de um cineasta", destaca o diretor Gabriel Villela. Embora o seriado tenha registrado índices de audiência abaixo do esperado - em parte pelo horário ingrato que lhe é reservado na grade - seria interessante ver o universo teatral e a obra de Shakespeare representados na televisão aberta em novas temporadas de "Som&Fúria", seguindo os passos de "Slings&Arrows".
(Fonte: Bem Paraná, O Portal Paranaense.)