segunda-feira, 1 de março de 2010

Estilo e caracterização

Martin Esslin


O drama é a mais social de todas as formas de arte. Ele é, por sua própria natureza, uma criação coletiva: o dramaturgo, os atores, o cenógrafo, o figurinista, o encarregado dos acessórios de cena, o iluminador, o eletricista e assim por diante, todos fazem sua contribuição, do mesmo modo que também o faz a platéia, por sua simples presença. A parte literária do drama, o texto, é fixo, uma entidade permanente, porém cada representação de cada produção daquele mesmo texto é uma coisa diferente, porque os atores reagem de forma diferente a públicos diferentes entre si, bem como, é claro, a seus próprios estados interiores.

Essa fusão de um componente fixo e outro fluido é uma das principais vantagens que o teatro ao vivo leva em relação aos tipos gravados de drama - o cinema, o radioteatro, o teleteatro. Ao fixar permanentemente a interpretação/representação, bem como o texto, esses veículos condenam seus produtos a um inevitável processo de obsolescência, simplesmente porque os estilos de interpretação, dos trajes e da maquilagem, bem como as próprias técnicas de fixação em um filme, disco ou tape, mudam também, de modo que antigas gravações de radioteatro ou filmes antigos levam a marca indelével de produtos ligeiramente ridículos de uma outra época. Só os grandes clássicos, como por exemplo O bulevar do crime, de Marcel Carné, ou as comédias de Charles Chaplin ou Buster Keaton são capazes de sobreviver àquela aura de época passada.

O componente mais importante de qualquer performance dramática é o ator. Ele é a palavra transformada em carne viva. E carne, aqui, é usada no sentido mais tangível do termo. As pessoas vão ao teatro, acima de tudo, para ver pessoas bonitas; e entre outras coisas os atores são, também, pessoas que se exibem por dinheiro. Negar um forte componente erótico a qualquer experiência dramática é a mais tola das hipocrisias.

Em verdade, uma das maiores forças do teatro - bem como de todas as outras manifestações do drama - é a de que ele opera em todos os níveis a um só tempo, desde os mais básicos até os mais sublimes, e que no melhor drama uns e outros alcançam fusão perfeita. Deleitamo-nos com a poesia de Shakespeare em uma peça como Romeu e Julieta não só por se tratar de poesia suprema, mas também porque tal poesia configura-se em uma linda jovem e um rapaz que despertam nossos desejos; o desejo estimula a poesia e a poesia enobrece o desejo e, assim, a divisão entre corpo e mente, entre terreno e espiritual - o que constitui, de qualquer modo, uma falsa dicotomia - é abolida e a natureza unificada do homem, animal e espiritual, reafirma-se.

Os atores corporificam e interpretam o texto fornecido pelo autor. E poderia parecer que eles são totalmente livres para fazê-lo do modo como bem entendessem. Mas isso só é verdade dentro de certos limites, já que o autor tem à sua disposição um instrumento muito poderoso para impor aos atores o modo de representação que deseja. Tal instrumento é o estilo. Suponhamos que um ator tenha que dizer a seguinte fala em uma peça:

"Diga-me, amigo, quais as suas novas!
Sou todo ouvidos, ânsias e temores
E pronto p'ra enfrentar o que vier..."

Ou que tivesse de expressar idéias idênticas em igual situação nos seguintes termos:

"Como é, Peter, vamos logo com essa história. Estou louco para saber as novidades...Sente-se aí...quer tomar alguma coisa?...Você sabe como isso é importante para mim...Estou tentando ser otimista sobre a resposta...mas não consigo deixar de ter dúvidas, também. Quer com água ou soda?...Como é, diga logo o que tem para dizer...pode deixar que eu agüento..."

É claro que a primeira passagem, sendo em verso e em linguagem ligeiramente literária, não pode ser interpretada com a aflição, o naturalismo, da segunda, que expressa pensamentos e circunstâncias perfeitamente semelhantes. Porém, ao compor a passagem em verso, o autor torna impossível, por exemplo, que o ator acompanhe sua ação oferecendo uma bebida qualquer ao seu visitante: pura e simplesmente não fica bem ficar perguntando a um amigo se ele prefere água ou soda nos ritmos um tanto solenes do verso branco (e se alguém o fizer, o resultado será um efeito um tanto ou quanto cômico, o que, obviamente não é o que se deseja aqui).

A passagem em linguagem literariamente enaltecida, portanto, obviamente terá de ser dita com o ator mantendo uma postura muito mais digna e despojada; seus gestos terão de ser infinitamente mais estilizados, sua máscara muito mais serena. Para que o ator use linguagem desse tipo, por exemplo, é inconcebível que fique coçando a cabeça ou esfregando o nariz enquanto fala. Porém, para o ator que estivesse dizendo a segunda fala, tudo isso seria perfeitamente possível: os ritmos são menos formais, mais quebrados, as palavras usadas mais corriqueiras. Brecht, um dramaturgo que era também soberbo diretor teatral, exigia que o autor usasse linguagem gestual, o que significa que deveria escrever de modo a impor ao ator o estilo correto do movimento e da ação, compelindo-o a restringir-se à idéia que o autor tinha do modo pelo qual suas palavras deveriam ser representadas.

Porém o estilo em que é escrito o texto dramático preenche igualmente uma outra função: a de informar a platéia. Pelo estilo no qual a peça foi escrita o público é imediata e, em grande parte, insconscientemente informado da maneira pela qual deverá aceitar a obra, o que deverá esperar dela e a que nível deverá a ela reagir. Pois a reação de uma platéia depende em grande parte de suas expectativas. Se estiverem sob a impressão de que a peça é para ser engraçada ficarão mais rapidamente predispostos a rir do que se souberem, de início, que a obra deve ser encarada com a mais profunda seriedade.

Parte disso é comunicado ao público pelo título, pelo autor, pelos atores, ou pelo fato de ela ser descrita no programa como comédia, tragédia ou farsa. No entanto, pode haver muita gente na platéia que não recebeu qualquer tipo de informação prévia, enquanto que, por outro lado, nem sempre se torna claro, mesmo após a leitura do programa, quais são as intenções do autor ou do diretor. Na primeira apresentação de Esperando Godot, de Beckett, peça escrita em um estilo extremamente insólito naquele tempo, o público não sabia como reagir, se devia rir ou chorar. Porém na maioria dos casos - e em relação a convenções já consagradas - o estilo das falas, da interpretação, o estilo do cenário e dos figurinos, transmitem imediatamente ao público as infomações necessárias, permitindo-lhe afinar suas expectativas com o nível adequado: esse estilo então lhe dirá, para permanecermos dentro dos limites de nosso exemplo, a que nível de abstração a peça se desenrolará.

Em uma tragédia de Racine, por exemplo, a própria natureza dos versos alexandrinos altamente formalizados torna imediatamente claro que a peça concentrar-se-á nas mais sublimes paixões de seus personagens. Nesse tipo de peça nada é dito a respeito das preocupações menores dos personagens envolvidos. Fedra ou Andrômaca jamais são vistas comendo ou em conversa fútil. O verso e o nível da linguagem em pouco tempo dão-nos consciência disso.
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Artigo extraído - e aqui bastante reduzido - do 2º capítulo do livro Uma anatomia do drama, cuja leitura consideramos indispensável (Zahar Editores, Rio de Janeiro/1978).
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