Domingos Oliveira
1) O teatro é a sujeição do trágico (Nietsche). Toda arte é isso, significa o seguinte: que a vida é muitas vezes insuportavelmente dura. É preciso que este impacto seja sentido através do prisma da arte para que seja alcançada a própria compreensão da realidade. No teatro até tragédia é sublime. O homem necessita da arte para que a vida seja suportável. Assim sendo, o teatro é a sujeição do trágico, a festa, a propaganda da vida, ela mesma.
2) O teatro ensina ao homem o que é a filosofia. Explicamos: certas pessoas sentem ou pressentem, olhando o mundo, a existência de algo por trás das aparências. Diz-se que estas pessoas têm o espírito filosófico. Foram elas que criaram todas as filosofias, das quais se derivaram todas as ciências. Este sentimento filosófico básico encontra no teatro sua metáfora genial. Diante de uma peça, devemos acreditar nela, embora sabendo que se trata de uma aparência, tramada pelos artistas. Assim sendo, é o teatro que expõe ao homem, de modo vivo e direto, a experiência filosófica básica. Portanto, todo teatro é originalmente filosófico.
3) Ele é a mais eficiente forma da didática. O mais direto modo inventado até hoje de transmitir uma lição, ensinamento, mensagem. Humanizando a teoria, ele pode ser usado, sempre que preciso, como divulgador da idéia humanamente útil. Lembremos que sempre funcionou como tribuna, que não há movimento mais libertário da História que não passe pelo teatro, que nos intervalos os poetas liam seus versos e os políticos seus manifestos. Esta função de tribuna, perdida modernamente, nescessita resgate.
4) Atividade comunal, neste ponto levando enorme vantagem sobre o livro, o cinema e a TV, o teatro é o homem diante do homem. Nenhuma outra atividade (talvez, a guerra) demonstra de modo mais inequívoco os valores da colaboração. Nesta medida tem efeito moral, é indicador de caminho.
5) Ultimamente tem estado muito em voga a discussão do teatro dentro do espetáculo teatral. A pesquisa de linguagem. A linguagem como valor maior, além do discurso a que ela serve de veículo. Pela repetição e insistência, esses movimentos voltaram-se certamente em direção ao umbigo. Fazemos ao teatro atual uma acusação de máxima gravidade: acusâmo-lo de esquecer da platéia. Esquecida, ela vai embora. E cada vez mais representamos apenas pra nós mesmos, para aqueles poucos que fazem ou desejam fazer o mesmo. Basta de discutir o teatro: voltemos a fazê-lo.
6) Uma afirmativa insidiosa, de aparência inteligente, chega a mim das mais variadas fontes. "Não é preciso contar histórias no teatro. Porque não há mais histórias para contar. As histórias são todas iguais e todas já foram contadas". Este tipo de afirmativa, que encerra um tédio digno de piedade, é falso. Ou melhor, esperamos que seja falso. Posto que se não há mais histórias para contar, não há mais histórias para viver...
7) O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Excluímos aqui os três tipos de espetáculo que, por vezes, ainda têm público: a) o sub-produto da TV; b) as produções que compram o público com grandes orçamentos; c) aqueles incensados pela mídia imbecil.O único verdadeiro problema do teatro é a falta de público. Se público houvesse, como somos artistas, arte haveria. Por que foi embora o público? A TV? A ditadura? Sim, mas não apenas. Acuso o teatro de esquecimento da platéia. Objetivemos perigosamente: o bom teatro é feito para divertir e comover. De preferência divertir e comover.
8) Somente a boa diversão e a grande emoção fazem pensar. Caso contrário, permanecemos indiferentes. O pano cai e vamos embora, um tanto aborrecidos. Mas não pensamos. Procurar diretamente um teatro de reflexão é procurar onde não está. A reflexão no teatro é um sub-produto. Sub-produto da emoção e do divertimento. Nossa corrida é atrás do inesquecível.
9) O teatro é sobretudo sábio. Todas as sabedorias do mundo convergem para o ensinamento do aqui-agora. O teatro é o aqui-agora. A arte viva por excelência.
10) Obscuridade ou clareza? Certo jovem diretor de teatro um dia me confessa: exige que pelo menos 30% de seu espetáculo deve permanecer obscuro e incompreensível, caso contrário, no seu entender, perde-se a própria profundidade! Respondi que ele jamais teria seus 30% de obscuridade caso não alcançasse os 100% de clareza, posto que o mistério está além da luz. Somente quando o discurso é claro, esgotado o campo do possível, poderá o mistério ser tocado. A obscuridade, a falta de clareza, vem, por vários motivos, sendo cultuada nos tempos recentes. Isto, além de tolice, é talvez a principal causa do afastamento do público. Não se pode pedir de sã consciência a um espectador que pague seu ingresso, assista a peça, não entenda e saia satisfeito...É pedir demais. É preciso resgatar os valores apolíneos do teatro em sua origem. A clareza, a retidão do discurso. O teatro é uma representação apolínea de sentimentos dionisíacos.
11) Chegamos assim a uma afirmação radical: o teatro é o primado da narrativa. Teatro não é palavra, não é imagem, não é espetáculo nem ator. Mais que tudo isso, é narrativa. A narrativa usa a palavra, a imagem, o espetáculo, o ator em movimento. A narrativa pode ser lógica ou delirante, mágica ou objetiva, irada ou serena, mas sempre será o principal. Teatro é narrativa. Fluxo, como a vida, puro fluxo.
12) Quando a narrativa, ela mesma, contém o conteúdo, o clímax do teatro é alcançado. A narrativa é maior que a forma, maior que o conteúdo, contém ambas. A narrativa é o continente.
13) Para um bom diretor de teatro, o discurso paralelo é inevitável, justifica sua função. Mas sempre será secundário, mesmo quando é maior. Somente poderá atingir o espectador se o discurso principal, a narrativa, o fizer.
14) O moderno diretor de teatro não pode ser um autor frustrado e, sim, um leitor pleno, criativo e pensante.
15) Disse Engels que, mais do que supunha Marx, a dialética não é apenas uma lei dos homens e sim de toda a natureza. A dramaturgia nada mais é que uma emocionante exposição desta verdade geral. A dramaturgia é dialética, um exemplo vivo da própria dialética. Toda peça de teatro consiste numa síntese, à qual se antepõe uma antítese, gerando uma síntese, que fecha o pano.
16) Não sabemos ainda armar o caminho de volta do público ao teatro. Sabemos porém que nome ele tem: generosidade. Mozart, que era de palavras, deixou-nos a melhor definição de "gênio"". Disse que um gênio não é apenas uma grande inteligência, nem quando esta se alia a um grande talento. É preciso também um grande amor.
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Artigo extraído da revista Cadernos de teatro nº 126/1991, edição já esgotada.