Jerzi Grotowski
O ator é o homem que trabalha em público com seu corpo, oferecendo-o publicamente. Se seu corpo se restringe a demonstrar o que é - algo que qualquer pessoa comum pode fazer - ele não é, então, um instrumento obediente capaz de realizar um ato espiritual. Se ele é explorado por dinheiro e para ganhar favores da platéia, então a arte do ator beira a prostituição. É fato que durante muitos séculos o teatro esteve associado à prostituição num sentido da palavra ou n'outro. As palavras "atriz" e "cortesã" foram sinônimas. Hoje são distintas por uma linha ainda mais clara, não pela mudança no mundo do ator, mas porque a sociedade mudou. Hoje, é a diferença entre a mulher respeitável e a cortesã que ficou obscurecida.
Choque
O que choca quando se olha o trabalho de um ator como é praticado hoje em dia é a miséria dele: a barganha de um corpo explorado por seus protetores - diretor, produtor - criando em volta uma atitude de intriga e revolta. Justamente porque apenas um grande pecador pode se tornar um santo de acordo com os teólogos (Não esqueçamos a Revelação: "Porque és morno e não frio nem quente, eu te vomitarei de minha boca"), da mesma maneira a miséria do ator pode transformar-se numa espécie de santidade. A história do teatro tem inúmeros exemplos disso.
Desafio
Não me interpretem mal. Falo de "santidade" como um ateu. Quero dizer "santidade secular". Se o ator, ao se desafiar publicamente desafia outros, e através do excesso, profanação e sacrilégio ultrajante se revela, deixando cair sua máscara cotidiana, torna possível ao espectador empreender um processo similar de auto-penetração. Se ele não exibe o corpo, mas aniquila-o, fá-lo queimar, liberta-o de toda resistência a qualquer impulso físico, então ele não está vendendo seu corpo, mas sacrificando-o. Ele repete a expiação, está próximo da santidade. Se tal ato não é algo passageiro e fortuito, um fenômeno que não pode ser previsto no tempo ou no espaço, se desejamos um grupo de teatro cujo pão de cada dia é essa espécie de trabalho - devemos seguir, então, um método especial de pesquisa e treinamento.
Clichês
Há um mito que diz que um ator com um considerável fundo de experiência pode criar aquilo que podemos chamar de seu próprio "arsenal" - isto é, um acúmulo de métodos, artifícios e truques. Daí ele pode tirar um certo número de combinações para cada papel, atingindo, assim, a expressividade necessária para prender o espectador. Esse "arsenal" ou depósito nada mais é que uma coleção de clichês, e nesse caso o método é inseparável da concepção ator-cortesão.
Diferença
Se a diferença entre o "ator-cortesão" e o "ator-santo" é a mesma que a diferença entre o cérebro de um cortesão e a atitude de dar e receber que brota do verdadeiro amor: em outras palavras, o auto sacrifício - a coisa essencial, no segundo caso, é estar apto a eliminar quaisquer elementos perturbadores a fim de poder ultrapassar toda a limitação concebível. No primeiro caso, é uma questão da existência do corpo; no outro, é antes a sua não-existência. A técnica do "ator santo" é uma técnica indutiva (isto é, a técnica da eliminação), enquanto a do "ator-cortesão" é a técnica dedutiva (isto é, uma acumulação de habilidades).
Impulso
Um ator que empreende um ato de auto-penetração, que se revela e sacrifica o mais íntimo de si mesmo - o mais doloroso, aquilo que não é apreendido pelos olhos do mundo - deve ser capaz de manifestar o mínimo impulso. Ele deve ser capaz de expressar, através do som e do movimento, aqueles impulsos que vagueiam na linha limite do sonho e da realidade. Em resumo, deve ser capaz de construir sua própria linguagem psico-analítica de sons e gestos da mesma maneira que um grande poeta cria sua linguagem própria. Se tomarmos, por exemplo, o problema do som, a plasticidade respiratória do ator, o seu aparelho respiratório deve ser infinitamente mais desenvolvido do que aquele do homem da rua. Ainda mais, esse aparelho deve ser capaz de produzir reflexos sonoros tão rapidamente que o pensamento - que remove toda espontaneidade - não tenha tempo de interferir.
Investigação
O ator devia ser capaz de poder decifrar todos os problemas do seu corpo que lhe são acessíveis. Devia saber como dirigir a coluna de ar às partes do corpo onde o som deve ser criado e amplificado pelo ressonador. O ator comum conhece apenas o ressonador da cabeça; isto é, ele usa a cabeça como ressonador para amplificar a voz, fazendo que ela soe mais "nobre", mais agradável ao público. Ele deve mesmo, às vezes, fazer uso do ressonador do peito. Mas o ator que investiga com cuidado as possibilidades de seu próprio organismo, descobre que o número de ressonadores é praticamente ilimitado.
Possibilidades
Pode explorar não só a cabeça, mas o corpo, e também as costas e a parte ocipital da cabeça, o nariz, os dentes, a laringe, o estômago, a espinha, como um ressonador total que compreende atualmente todo o corpo, e muitos outros, muitos dos quais nos são ainda desconhecidos. Ele descobre que não é bastante fazer uso da respiração abdominal no palco. As várias fases de sua ação física exigem diferentes espécies de respiração se ele quiser evitar dificuldades com o fôlego e a resistência física. Descobre que a dicção que ele aprendeu na escola de teatro provoca muitas vezes o fechamento da laringe. Deve adquirir a habilidade de abrir a laringe conscientemente, e de testar de fora se ela está aberta ou fechada. Se ele não resolver esses problemas, sua atenção estará tomada por dificuldades que encontrará e o processo de auto-penetração falhará fatalmente.
Liberdade
Se o ator está consciente de seu corpo, não pode penetrá-lo e revelar-se. O corpo deve estar livre de toda resistência. Deve, virtualmente, cessar de existir. Como para a voz e a respiração, não é bastante que o ator aprenda a usar os vários ressonadores para abrir a laringe e selecionar o tipo certo de respiração. Ele deve aprender a realizar tudo isso inconscientemente nas fases culminantes de sua ação e isso, por sua vez, é algo que exige uma nova série de exercícios. Quando ele estiver trabalhando o papel, deve aprender a não pensar em acrescentar elementos técnicos (ressonadores etc.), mas deve conseguir eliminar os obstáculos concretos que aparecem (por exemplo, resistência vocal).
Sucesso
Isso não é perder-se em minúcias. É a diferença que decide o grau de sucesso. Significa que o ator nunca possuirá uma técnica permanentemente "fechada", porque cada estágio de seu aperfeiçoamento, cada desafio, cada excesso, cada quebra de barreiras ocultas, ele encontrará novos problemas técnicos num nível mais elevado. Ele deve, então, aprender a superá-los com o auxílio de certos exercícios básicos. Isso quanto a movimento, plasticidade do corpo, gesticulação, construção de máscaras por meio da musculatura facial e, de fato, para cada pormenor do corpo do ator.
Penetração
Mas o fator decisivo nesse processo é a técnica de penetração psíquica. Ele deve aprender a usar seu papel como se fosse o bisturi de um cirurgião, a dissecar-se. Não é uma questão de retratar-se sob certas circunstâncias dadas ou de "viver" o papel; nem apresentar o tipo distante de interpretação comum ao teatro épico e baseado em cálculo frio. O importante é usar o papel como um trampolim, um instrumento com o qual estude o que está oculto atrás da máscara diária - o âmago mais íntimo de nossa personalidade - de maneira a sacrificá-lo, expô-lo.Isso é um sucesso, não só para o ator como também para o público.
Convite
O espectador compreende, consciente ou inconscientemente, que tal ato é um convite que lhe fazem para dar o mesmo, e isso muitas vezes levanta oposição e indignação, porque nossos esforços diários são para esconder a verdade sobre nós mesmos, não só diante do mundo, mas também de nós próprios. Tentamos fugir à verdade a nosso respeito, enquanto aqui somos convidados a parar e olhar mais perto. Temos medo de sermos transformados em estátuas de sal se virarmos a cabeça como a mulher de Lot.
Mobilização
A realização desse ato a que nos referimos - de auto-penetração, exposição, exige uma mobilização de todas as forças físicas e espirituais do ator, que está num estado de prontidão inútil, uma disponibilidade passiva, que torna possível uma ação ativa. Deve-se recorrer a uma linguagem metafórica para dizer que o fato decisivo nesse processo é a humildade, uma predisposição espiritual: não fazer alguma coisa, mas evitar fazer algo, de outra forma o excesso se torna impudência e não sacrifício. Isso significa que o ator deve agir em estado de transe. Transe, como o entendo, é a habilidade de se concentrar em um recurso teatral particular e pode ser alcançado com um mínimo de boa vontade.
Doação
Se fosse expressar tudo isso numa sentença, diria que tudo é uma questão de dar-se. Deve-se dar-se totalmente, na mais profunda intimidade, com confiança, como quando se dá a alguém no amor. Aí está a chave. Auto-penetração, transe, excesso, a própria disciplina formal - tudo isso pode ser realizado, desde que a gente se dê inteiramente, humildemente, sem defesa. Esse ato culmina num climax. Traz apaziguamento. Nenhum dos exercícios nos diversos campos do treino do ator deve ser exercício de habilidade. Eles levariam a um sistema de alusões que conduzem a um processo enganoso e incrível de auto-entrega.
Anatomia
Acho que se deve desenvolver uma anatomia especial do ator; por exemplo, encontrar os diversos centros de concentração do corpo para as diferentes maneiras de agir buscando áreas do corpo que o ator às vezes sente serem suas fontes de energia. A região lombar, o abdome, e a área em volta do plexo solar muitas vezes funcionam como uma fonte.
Guia
Um fator essencial é, nesse processo, a elaboração de um guia de controle para forma, a artificialidade. O ator que realiza um ato de auto-penetração inicia um ato que é marcado através de vários reflexos sonoros e gestuais, formulando uma espécie de convite ao espectador. Mas esses sinais devem ser articulados. A expressividade está sempre conectada com certas contradições e discrepâncias. Uma auto-penetração indisciplinada não é liberação, mas é percebida como uma forma de caos biológico.
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(Towards a Poor Theatre, Clarion Book, Edit. Simon & Schuster - New York. Este artigo está publicado na revista Cadernos de Teatro nº 51/1971, edição já esgotada)