Max Fleiuss
O teatro brasileiro surgiu em São Vicente e, após, no Rio de Janeiro, contemporâneo da fundação da cidade, como escola de catequese espiritual, artística e religiosa, criado por iniciativa do provincial da Missão Jesuíta, padre Manuel da Nóbrega. Ditou sua instituição o intuito de formar, nutrir e educar as almas, tanto do gentio como dos colonos cuja salvação, paz e glória de Deus, trouxe por principal dever a expedição aportada ao Brasil em 1549, na forma do regimento dado a Tomé de Sousa. É, sem contestação, obra exclusiva do Cristianismo, que serviu de alicerce à cultura nacional desde os primeiros dias do descobrimento.
Inspiração
Nosso primitivo teatro, de caráter meramente religioso, teve como gênio inspirador o padre Manuel da Nóbrega, mas por fundador, ensaiador e nosso primeiro autor literário e teatral, o padre José de Anchieta, eminente vulto de "Taumaturgo e apóstolo do Novo-Mundo", como a História o denominou, que no Brasil exibiu peças sacras e autos de sua lavra. No ativo de seus grandes serviços à nossa pátria, inscreve-se a fundação do teatro brasileiro em 1555 no Rio de Janeiro, segundo se refere na "Chronica de Jesús do Estado do Brasil", do padre Simão de Vasconcellos.
Fruto
A criação do teatro brasileiro foi, pois, fruto da cultura intelectual, moral, artística e religiosa implantada em nossa terra, com a palavra de Deus, pela missão da Companhia de Jesus. Não se filia ao cultivo da arte literária propriamente dita, nem sequer é um reflexo das primitivas comédias e entremezes castelhanos, desempenhados pelas companhias ambulantes de cômicos e pantomimeiros da Península Ibérica do século XV, anteriores aos autos do reinado de Dom Sancho, o Povoador e aos de Gil Vicente, havido, no entanto, por legítimo fundador do teatro português.
Sobrenatural
O nosso teatro, menos ainda, teve por fonte histórica a arte mais antiga dos "mistérios", magistralmente evocados por Victor Hugo, que profanaram os claustros da Idade Média com as cenas e danças lascivas e repugnantes e a diabólica Festa dos Loucos, em que era eleito em comício público o Papa dos Doidos; nem os poracés fetichistas e orgíacos dos nossos selvagens. Jultifica perfeitamente a fundação da arte cênica em nosso país a seguinte passagem da Crônica do padre Simão de Vasconcellos, onde, esboçando o perfil sobrenatural de Manuel da Nóbrega, se refere que o superior jesuíta...
"...zelava com cuidado sobre as indecências das igrejas; e para impedir as que se cometiam em alguns atos que representavam nelas introduzia com parecer dos moradores de São Vicente, em lugar destes, um muito devoto, a que chamaram Pregação Universal - porque servia para todos, portugueses e índios, e constava de uma e outra língua: concorria a ela toda a Capitania, e representava-se na véspera do jubileu do dia de Jesus, que a volta do ato ganhava grande número de povo".
A Pregação Universal foi o primeiro trabalho da lavra de Anchieta. Posteriormente ao de São Vicente, e ao invés do que afirmam alguns cronistas pátrios, foi que se constituiu o Teatro dos Índios de São Lourenço, no Rio de Janeiro.
Trepadeiras
Fundadas as aldeias de Arariboia e São Lourenço, que servira de início e de um dos marcos da atual capital do Estado do Rio de Janeiro, inaugurou-se ali o seu Teatro dos Índios, que, segundo Mello Moraes Filho, consistia num tablado em torno do qual recebiam festões vegetais, formados por trepadeiras e parasitas odoríferas, servindo de pano de boca duas cortinas vermelhas de damasco, que escondiam os personagens à vista dos espectadores, à guisa do vellarium do antigo teatro romano.
Ao lado, havia um camarote ou tribuna para os padres da Companhia, adornado de folhagens e painéis religiosos, de símbolos sagrados e estofos magníficos. No fundo, ficava um compartimento para os figurantes da peça; os acessórios e adereços de cena eram fornecidos também pela natureza ou pelo santuário, alfaias, símbolos, paramentos e ricas colgaduras de vistosas cores, galhardetes, bandeiras reais, grinaldas e flores silvestres, lianas e achas de resina perfumosa, tudo acompanhado do rumor esfusiante dos maracás e das inubias.
Singeleza
Anchieta compunha enredos singelos, mas altamente impressionáveis, consultando de perto as condições do meio social a que se destinavam: liçoes e quadros-vivos de moral cristã, como o Mistério de Jesús, a mais notória de suas produções teatrais, levado pela primeira vez à cena no dia do Natal em comemoração à festa do padroeiro da Missão. Poema dramático-religioso, nos moldes dos Irmãos da Paixão, representava a luta de três demônios - Guaixara, Savarana e Aimbiré - que tentavam destruir a nascente aldeia católica, semeando o pecado e abalando a fé nativa dos gentios, mas vencidos por São Sebastião e São Lourenço, padroeiro do Rio de Janeiro e da aldeia, que entravam sempre em cena escoltados de anjos luminosos, potências selestiais e dos Anjos da mesma aldeia - Tijori e Cupié, enquanto Decio, Nero e Valeriano traziam por séquito os espíritos endemoniados.
Além dos heróis bárbaros da guerra dos Tamoios, como Guaixara e Aimbiré, figuravam no poema de Anchieta seres fabulosos da floresta, como o Grande Cão; aves noturnas e sinistras: o corvo, o urubu, a tataurana e o gavião. Na apoteose final, os imperadores romanos, perseguidos pelos cristãos, precipitavam-se em um rio e morriam afogados, enquanto os santos subiam à glória celeste e os gênios do mal eram precipitados no inferno.
Duração
Durava o espetáculo mais de três horas e neles não se exibiam atrizes, mas somente amadores instruídos pelos padres da Companhia. Alguns desses atores, como os que faziam Nero, Decio e Valeriano, no Mistério de Jesus, apareciam do palanque real carregados por quatro escravos e contracenavam por mímica; os outros, porém, declamavam os versos de Anchieta em guarani e em português, como, aliás, eram redigidos todos os Autos anchietanos, por se destinarem simultaneamente à redução do gentio à fé católica e educação moral dos colonos portugueses.
Impressão
Em 1575, refere Ferdinad Wolf, por iniciativa dos jesuítas representou-se em Pernambuco o drama O rico avarento e o lázaro pobre. A impressão causada no auditório por esta peça foi tal que muitos fazendeiros e pessoas abastadas do lugar, que nunca haviam dado esmolas aos pobres e se caracterizavam pela excessiva sovinice, a partir de então abriram seus corações às práticas da caridade cristã. Assim, o teatro começava a a exercer seu principal papel e função social para que foi criado nas primitivas eras - formar e educar o espírito do povo.
Recordações
Em suas Recordações Coloniais - O Rio de Janeiro em 1583, o cônego Fernandes Pinheiro reedita a tradição de Fernão Cardim de que a 20 de janeiro deste ano, no adro da Igreja da Misericórdia desta cidade, em teatro improvisado, representou-se um imponente "mistério", extraído do martirológio de São Sebastião. Nesse mesmo ano fizeram os padres da Missão exibir na Aldeia do Espírito Santo um Diálogo Pastoril, entremês poético em vernáculo, castelhano e grarani.
Gala
Em 1584, segundo o mesmo Fernão Cardim, durante os festejos de São Sebastião, realizou-se tabém no adro da Igreja da Misericórdia do Rio de Janeiro uma representação solene do Auto da Pregação Universal, de Anchieta. A esse espetáculo de gala assistiram o cacique Arariboia com seu séquito e a representação oficial da Capitania. Diz Pereira da Silva que esse Auto foi desempenhado por alguns dos moradores mais despachados do local, falando em seu nome e penitenciando-se das próprias culpas. Acrescenta Vieira Fazenda que tomavam parte nos mesmos espetáculos noviços e estudantes.
Comédia
Já no século XVII representou-se na Bahia a comédia Constancia e triunfo, original do padre José Borges de Barros (1659-1719), natural desta Capitania, teólogo e canonista famoso, que foi vigário em Lisboa.
Outro escritor teatral brasileiro dessa época foi Salvador de Mesquita, nascido no Rio de Janeiro em 1646 e educado em Roma, onde escreveu e fez levar à cena o drama sacro em latim Sacrificium Jeptoe e várias tragédias, como Demetrius, Perseus e Prusias Bithinice.
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O presente artigo, aqui um pouco reduzido, foi publicado na revista Cadernos de Teatro nº 72/1977