quarta-feira, 26 de agosto de 2009

A peça que a vida prega

Sábato Magaldi

Nelson Rodrigues tornou-se desde a sua morte, em 21 de dezembro de 1980, aos 68 anos de idade, o dramaturgo brasileiro mais representado - não só o clássico da nossa literatura teatral moderna, hoje unanimidade nacional. Enquanto a maioria dos autores passa por uma espécie de purgatório, para renascer uma ou duas gerações mais tarde, Nelson Rodrigues conheceu de imediato a glória do paraíso, e como por milagre desapareceram as reservas que às vezes teimavam em circunscrever sua obra no território do sensacionalismo, da melodramaticidade, da morbidez ou da exploração sexual.

Parece que, superado o ardor polêmico, restava apenas a adesão irrestrita. As propostas vanguardistas, que a princípio chocaram, finalmente eram assimiláveis por um público maduro para acolhê-las. Ninguém, antes de Nelson, havia apreendido tão profundamente o caráter do país. E desvendado, sem nenhum véu mistificador, a essência da própria natureza do homem. O retrato sem retoques do indivíduo, ainda que assuste em pormenores, é o fascínio que assegura a perenidade da dramaturgia rodrigueana.

E não basta o mergulho nas criaturas e nas características do brasileiro. Nelson sabia que o conteúdo se associa intimamente à forma. Por isso não podia aceitar as convenções da rotina cênica. Quando o alimento habitual do nosso palco eram as comédias de costumes e os dramas pseudofilosóficos, passando da apresentação ao desenvolvimento e ao desfecho de uma história, ele subverteu a técnica narrativa, para incorporar a flexibilidade do cinema e admitir as flutuações do subconsciente. Daí a constante ruptura da linguagem realista, embora ninguém melhor do que ele soubesse captar as réplicas vivas da fala popular. E os diálogos se alternaram, conforme a necessidade, da frase asséptica, até a incompleta, à elaboração poética, desvinculada deliberadamente do cotidiano.

A postura inovadora se deu desde a primeira experiência, com A mulher sem pecado (1941), achando-se ele ainda longe de dominar os segredos do palco. A trama era protagonizada por Olegário, um obsessivo que, para testar a fidelidade da mulher, se fingia de paralítico, postado em cadeira de rodas. No momento em que ele, convencido da inocência da esposa, decide terminar o embuste, Lídia, sufocada pela situação, havia fugido com o chofer. Olegário encosta o revólver na própria fronte, para pôr fim ao conflito.

O autor se vale da revelação surpreendente (Olegário nada tinha de paralítico, recurso típico do melodrama). Mas Nelson conseguira dar sólida sustentação psicológica aos episódios, tornando-os verossímeis. E sobretudo não deixara cair a intensidade dramática, mantida até o final. Naquela época, as peças se dividiam habitualmente em três atos, e essa não escapava à regra. Só que a réplica inicial do segundo e do terceiro atos repetia a última do ato anterior, assegurando a continuidade indivisível da tensão. Uma estéia até certo ponto cautelosa, ainda que sugerindo as garras do inovador.

Inovação que não se fez esperada: a 28 de dezembro de 1943, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, interpretada pelo grupo amador Os Comediantes, estreava Vestido de noiva, marco renovador do palco brasileiro, nos campos da dramaturgia, da encenação (a cargo de Ziembinski) e da cenografia (concebida por Santa Rosa). A crítica logo saudou o acontecimento, irmanando-o à contribuição que deram à arte brasileira Carlos Drummond de Andrade na poesia, Villa Lobos na música, Portinari na pintura e Oscar Niemeyer na arquitetura. Acabara-se o complexo de inferioridade do nosso teatro.

O achado de Vestido de noiva consistia em desenvolver os episódios nos planos da realidade, da memória e da alucinação, e em materializar em cena, como projeção exterior, o subconsciente da acidentada Alaíde, que falecera após um ato cirúrgico malogrado. A realidade tem o papel simples de situar os acontecimentos estabelecendo-lhe a cronologia e a relação. Assim, sucedem-se os ruídos de atropelamento, a chegada da ambulância, os médicos à volta de uma mesa de operação, a notícia do acidente sendo transmitida ao jornal, os jornaleiros gritando a manchete, e por último a morte da atropelada. A partir desse resumo, não se poderia pensar na elaboração de um texto teatral de qualquer interesse.

É que está em jogo, em Vestido de noiva, a aventura interior da protagonista. Paralisada a atividade consciente, Alaíde, no choque, libera as fantasias da subconsciência, que se abrem para o território do poético. A leitura do diário de Madame Clessy - mundana assassinada por um adolescente, no princípio do século -, que Alaíde descobriu so sótão de sua residência, provoca nela o desejo de conhecer uma vida romântica, fora dos padrões prosaicos do cotidiano burguês. Realiza-se na identificação com a prostituta idealizada (que exclama: "As mulheres só deviam amar meninos de 17 anos") o sonho da jovem, que o casamento insatisfatório frustrou. E, ao lado da incursão alucinatória, Alaíde tenta recompor sua unidade, reconstituindo o passado. O plano da memória, sempre mais frágil e oscilante, à medida que se aproxima a morte, cumpre a função de configurar os alicerces do presente.

Vê-se que a psicanálise, sem nenhum cunho didático ou descrição simplista de receituário, alimenta a substância do texto. Decompostos numerosos elementos reunidos nas cenas, desdobram-se a mitologia do matrimônio, a rivalidade entre irmãs (disputam ambas o mesmo homem), o complexo de Édipo do adolescente atraído por Madame Clessy, a completação materna dela no apaixonado, a sedução do pecado em Alaíde, o vazio das aspirações, a ironia do destino. Com matéria quase evanescente, que evita as indagações complicadas, Vestido de noiva corporifica em beleza poética uma rica e despretensiosa experiência humana.

Depois de fixar o subconsciente, era natural que Nelson Rodrigues desse mais um passo em sua pesquisa, buscando os arquétipos, o inconsciente coletivo. Surgiu, em 1945, Álbum de família, que, logo interditada, conseguiu liberação em 1965, cerca de vinte anos depois. Se cabe afirmar que as duas primeiras peças privilegiam a análise psicológica, a terceira realização inaugurou o ciclo mítico do autor.

Anjo negro, o texto seguinte, escrito em 1946, um ano depois de Album de família, introduz uma variação. Enquanto a mãe Senhorinha tinha envolvimento amoroso com os filhos homens e ódio pela única filha, a mãe de Anjo negro, Virgínia, repudia também a filha, mas assassina um a um os três filhos homens, ainda na infância. Explica-se o motivo: mulher do negro Ismael, enfrenta corajosamente o problema racial, pondo a nu o preconceito, que, não obstante todas as recusas, existe velado na sociedade brasileira. A par da relação conflituosa, Virginia e Ismael se atraem reciprocamente, e surge nele, introjetada, a falta de auto-estima, ao admitir que a mulher destrua sua descendência.

Nelson não faz estudo sociológico da questão racial. Não lhe interessa apontar um caminho para a solução do problema - essa é tarefa de outra natureza, não projeto dramatúrgico. Incumbe à ficção ir ao cerne das motivações humanas, e Anjo negro desnuda o conflituoso relacionamento da mulher branca e do homem de cor. Ao invés de indicar um desfecho prosaico, a tragédia termina depois que o casal encerra num túmulo de vidro a filha de Virgínia e de Elias, o irmão de criação (branco) de Ismael. O coro sabe que o ventre de Virgínia foi de novo fecundado pelo marido e pressagia o "futuro anjo negro que morrerá como os outros". O ritual se repete, imutável.

Mais uma incursão no território mítico é procedida em Senhora dos afogados (1947), interditada em 1948 e finalmente estreada em 1954, no Municipal do Rio, no desempenho da Companhia Dramática Nacional, do Serviço Nacional de Teatro. O dramaturgo por assim dizer atualiza a Oréstia, de Ésquilo, pelo modelo próximo de Luto assenta a Electra, de O'Neill. A trilogia grega trata da sucessão final de crimes, na família dos Átridas, a partir do sacrifício de Agamenon, na volta triunfal da Guerra de Tróia, com o objetivo de consagrar a instituição do Tribunal do Aerópago. O damaturgo norte-americano ressalta o ângulo psicanalítico nos conflitos familiares, situando-se sob a égide de Freud. E Nelson acompanha a tônica de O'Neill, assinalando a poesia vinda de uma "personagem invisível: o mar próximo e profético, que parece estar sempre chamando os Drummond (os protagonistas da tragédia), sobretudo as suas mulheres".

A referência a Luto assenta a Electra (ou Electra e os fantasmas ou Electra enlutada, outros títulos dados em português a Mourning becomes Electra) não invalida em nada Senhora dos afogados, cuja originalidade se mantém intacta. Se Agamenon, em Ésquilo, e Ezra Mannon, em O'Neill, são assassinados pelas esposas no início da saga trágica, o Misael Drummond brasileiro permanece vivo até o final, para expirar de forma imperceptível no regaço da filha Moema. A maldição familiar grega assume fisionomia diferente, no universo rodrigueano: Misael fora ligado a uma prostituta, da qual teve um filho, que supunha morto. Essa prostituta quis inaugurar o leito nupcial do amante, quando ele casou com outra. D. Eduarda. Misael então a assassinou, a golpes de machado. Caberia ver nesse crime um símbolo: para um homem casar, ele precisa sacrificar a prostituta que existe na mulher, sobrando, assim, o matrimônio frio, assexuado. Nos limites incestuosos que tanto atraem Nelson, o filho desconhecido se torna noivo de Moema, sua meia-irmã, e seduz D. Eduarda, esposa do pai, verdadeira Fedra, às voltas com Hipólito. A trama transita entre várias sugestões míticas.

Dorotéia, estreada em 1950, encerra brilhantemente essa fase do dramaturgo, ainda que tivesse sido um malogro de público e, nas ousadias formais, selasse o divórcio definitivo com a crítica atuante. O princípio dos equívocos vinha do próprio gênero que lhe foi atribuído - farsa irresponsável. Na primeira edição da peça, o prefaciador Carlos Castello Branco não hesitou em qualificá-la "a mais realizada" das tragédias rodrigueanas. O mito em jogo, aí, é o da morte contraposta à vida ou, como viu o analista, o espectador assiste, estarrecido, à "inexorável vitória da morte sobre a vida".

As primas D. Flávia, Carmelita e Maura vivem numa casa feita de salas, sem nenhum quarto (a privacidade representaria o incitamento ao pecado), maceradas pela vergonha eterna de saber que "temos um corpo nu debaixo da roupa...". A castidade funciona como maldição familiar, desde que a bisavó amou um homem e casou com outro, recebendo, na noite de núpcias, a náusea. O pecado contra o amor provoca não apenas a punição da pecadora, mas se estende às sucessivas gerações.

Nesse ambiente ascético surge Dorotéia, a prima que se rendeu ao homem e, vítima de múltiplos padecimentos, resolve apaziguar-se no retorno à vida familiar. O pecado da carne exige expiação e, para ser recebida como igual, Dorotéia cobre a beleza com chagas deformadoras. As mulheres estão prontas para apodrecer juntas.

Nelson ensaia, ao lado dessa visão paroxística da criatura humana, uma linguagem que se poderia julgar de vanguarda, haurida na liberdade do surrealismo. Botinas desabotoadas simbolizam o noivo prometido a das Dores, que, por sua vez, manifesta a frustração de maternidade de D. Flávia. Nascida de cinco meses e portanto morta, Das Dores é obrigada a retornar ao útero materno, quando tenta um grito de liberdade que a deslocaria da estrita ética daquelas mulheres sem homens.

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(O presente artigo, extraído do livro Moderna Dramaturgia Brasileira - Editora Perspectiva - está aqui restrito ao perfil de Nelson Rodrigues e análise das seguintes peças: A mulher sem pecado, Vestido de noiva, Anjo negro, Senhora dos afogados e Dorotéia. Para os jovens estudantes de teatro, cumpre registrar que Sábato Magaldi é um dos maiores críticos teatrais da história deste país)
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