quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Tragicomédia

tragédia evitada e transcendida

Eric Bentley


A palavra tragicomédia pode ser originalmente encontrada na Roma antiga, mas parece que só entrou no uso corrente depois do Renascimento. Em suas primeiras formas, a melhor definição talvez seja a de Susane Langer: tragicomédia é "tragédia evitada". Os italianos do Renascimento falavam de "tragédia com um final feliz", e também inventaram e aperfeiçoaram a tragicomédia pastoril, que é quase-tragédia com um final feliz implícito, como na comédia romântica, desde o princípio.

Ao que parece, na era do Renascimento e do barroco o tragicômico não era tido em conta de um gênero inferior, bastardo. Uma rígida separação da tragédia e da comédia só foi efetuada mais tarde na Inglaterra e na Espanha; e até na França, o país que defendia essa separação, só teve lugar já em pleno século XVII. O normal, antes disso, era a tragicomédia e uma forma tão livre que foi mesmo denominada drama libre. E não muito depois da rígida separação ter passado a ser a norma estabelecida em toda a Europa, a revolta começou onde a resistência à norma se desenrolara, em grande parte, a contragosto: a Inglaterra.

Todas as histórias de teatro indicam o ano de 1731 como um marco, em virtude de ter sido o ano da peça de George Lillo, George Barnwell, the London Merchant. O apontamento é válido, apesar de George Barnwell ser uma obra medíocre que gerou outras obras medíocres. A história artística não é feita só de obras-primas. Antiquada em muitos aspectos, mesmo em 1731, a obra de Lillo fundou um novo gênero não-trágico e não-cômico. Lillo influenciou Diderot e Lessing e, através destes, o teatro de todo o mundo ocidental.

Mas também as peças de Diderot foram medíocres; e as de Lessing tinham mais categoria quando eram menos inspiradas pelo estilo de Lillo. A mistura setentista de tragédia e comédia fez uma escolha do pior dos dois mundos. No novo "gênero intermediário" - comédie larmoyante ou tragédie bourgeoise - a comédia perdeu o fôlego e a tragédia a profundidade. A procura de uma base "intermediária" foi um modo de evitar um terreno mais significativo. O novo gênero seguiu a corrente mais débil do pensamento setecentista, no sentido de um otimismo excessivo sobre a natureza humana.

Se os homens são "bons por natureza" - se são "homens de sentimento" - então onde encontrar a tragédia e a comédia, que extraem seu dinamismo da "destrutividade" humana? Se o "gênero intermediário" fosse todo o século XVIII, poderíamos dizer que a literatura dramática se perdera numa falsa pista e o "gênero intermediário" poderia considerar-se o final do teatro como arte capaz de tomar a medida do homem.

Mas a história é mais complexa do que os livros de história e o "drama moderno" de Ibsen não é um simples desenvolvimento da "tragédia burguesa" de Lillo. Uma inversão de rumo teve lugar algures. Um gênero intermédio que nasceu para refletir e adular a vida não-heróica do lojista provou ser mais tarde uma arma usada contra ele. A fim de ser uma arma de qualquer espécie, tinha primeiro de ser refeita. Uma comédia com lágrimas, em vez de risos, era comédia sem comédia. Uma tragédia em que o conflito inconciliável está fora de hipótese é tragédia sem tragédia. Dizer que o resultado é tragicômico, não tem, portanto, lógica nenhuma.

Uma tragicomédia válida só resultaria se os dramaturgos pudessem trazer de novo para esse gênero intermédio aquilo que, precisamente, fôra mantido fora dele. E Ibsen, com efeito, embora seja moderno por uma parte, representa, por outra, um retorno a muito do que é tradicionalmente cômico e trágico. A sua própria concepção da natureza humana equilibra perfeitamente o clássico e o moderno. É moderno na medida em que tende a ver os elementos destrutivos como produto específico de uma neurose. É clássico na medida em que essa neurose não é uma coisa de somenos, mera nomenclatura a que o fenômeno está nitidamente reduzido; é algo tão grande como o próprio pecado e pode-se relacionar - poeticamente, dramaticamente - ao sentido tradicional de destino. O pato selvagem pode ser considerado um ponto culminante, se observarmos como Ibsen recupera o terreno trágico e cômico a fim de criar o seu próprio reino particular de tragicomédia. E se, nesse aspecto, a peça está voltada para os dois séculos que a antecederam, também provou ser a mais "avançada" das suas peças, contendo as sementes da obra de Pirandello e de Eugene O'Neill.

Esse quadro de história literária é necessário, talvez, para introdução do tema do presente capítulo, que não é, evidentemente, a história da tragicomédia, mas sua vida em nossos corações e em nossos espíritos. Proponho-me ignorar suas formas (para nós) menos vivas e menos vigorosas, tais como a écloga ou a pastoral renascentista e o gênero intermédio setentista, e concentrar a atenção no que parece serem as duas espécieis mais significativas de tragicomédia.

A primeira é uma espécie de "tragédia com um final feliz", a qual não é "tragédia evitada", mas tragédia "transcendida". O tema, neste caso, é conflito resolvido, e o exemplo que usarei é a resolução da vingança através do perdão. Os mais belos exemplos dessa tragicomédia encontam-se, talvez, entre as chamadas "peças com tema" e "últimos romances" de Shakespeare. Mas não foi uma experiência pessoal de um só poeta. A Ifigênia em Táuris, de Goethe, é outra tentativa no mesmo gênero.

O mesmo podemos dizer de Príncipe de Hamburgo, de Kleit, a que o autor chamou um Schauspiel (Drama Teatral) - como alternativa para Trauerspiel (Tragédia) e Lustpiel (Comédia). O próprio Fausto de Goethe pode ser considerado uma das mais poderosas realizações neste domínio, e seu final esperançoso não deve ser interpretado como um otimismo superficial, muito menos como uma exploração fácil da ortodoxia religiosa. (O alvo correto dessas críticas seria o Don Juan Tenorio, de Zorrilla).

A outra espécie de tragicomédia que convida a uma análise é a "comédia com um final infeliz". Se a "tragédia com um final feliz" pode ser considerada um desenvolvimento a partir de tragédias como Rei Lear, em que os princípios de perdão e reconcicliação se encontam sugeridos, a "comédia com um final infeliz" pode ser levada em conta de um desenvolvimento a partir das comédias moliarescas, que terminam, "inconvincentemente", como um deus ex machina.
Essa segunda espécie de comédia é, essencialmente, o gênero de tragicomédia dos séculos XIX e XX (embora existam exemplos anteriores, como A Celestina). O pato selvagem de Ibsen é talvez o clássico do gênero. A concepção de peça "desagradável", de Bernard Shaw, está na mesma linha, embora suas próprias peças, portadoras desse rótulo, sejam muito mais cômicas do que trágicas. Santa Joana, não A profissão da Senhora Warren, é agrande tragicomédia de Shaw; Henrique IV e Seis personagens em busca de autor são as de Pirandello. As peças maiores de Tchecov são todas tragicomédias deste padrão, e eu interpretaria a insistência de Tchecov em que O jardim das cerejeiras é uma comédia como uma direção cênica para Stanislavsky e outros simplesmente advertindo-os para que não menosprezem os elementos acentuadamente cômicos. É comédia com um final infeliz. Um homem é um homem e Mahagonny, de Brecht, são obras tragicômicas, dentro dessa ordem de idéias. E o mesmo diremos de Monsieur Verdoux, de Chaplin, Esperando Godot, de Beckett, e As cadeiras, de Ionesco.

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O presente fragmento foi extraído do livro A experiência viva do teatro (Zahar Editores, tradução de Álvaro Cabral/1965
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